09 maio 2005

a malga

boa era a época dos figos.

ela comia pouco, quase nada mesmo. vivia de água pão com manteiga e ar.

a mãe adoecia a cada refeição de vê-la chorar por não ter apetite. tanto médico e nada!

mas de amoras e figos, apanhados em directo gostava ela, fosse a que hora fosse.


in


- desta vez fico eu sozinha no alentejo. é sempre a mana!

- nem penses. vais para lá ralar a tua tia. tu nem da comida que eu faço gostas. julgas que a tia pode, com tanta gente, andar a adivinhar o que tu queres comer?

- ó pai... deixe lá! deixa? deixa?!

- nem aguentas dois dias sem chorar.

- deixa-a ir, Bia, se chorar eu vou buscá-la. faz-lhe bem sair debaixo das saias da mãe, de vez em quando.

- tu lá sabes...

- eu não choro. eu lá não choro.

foi.

era verdade que chorava muito. sabia bem porquê.

na casa daquela tia tinha 2 primos e uma prima. o António, a Candinha e o Rodrigo.

ela e o Rodrigo eram potros à solta no verão ardente. nem sabiam do calor. havia fontes para beber e encharcarem a roupa se lhes apetecesse. muito antes de voltar a casa já secara.

- onde é que tu levaste a prima? ela é magrinha e é uma menina. não pode andar por aí feito uma doida aos pulos, como tu.

vão lavar as mãos que a comida está feita.

para ela a tia tinha preparado um prato de miudezas:

- gostas, lena? faz-te bem. é galinha caseira. a tia foi comprá-los fresquinhos. faz-te bem.

- eu como igual a todos.

- não vais gostar, é só feijão com chouriça...

- eu como igual tia.

- pronto. experimenta... se não gostares o teu prato já está feito...

quase desapontada. com o gesto interrompido, prato ainda na mão.





sentaram-se . o António chegava já tarde. depois de namorar. trabalhava muito. já podia.

a toalha muito limpa. pão na mesa ou não fora alentejo.

a tia trouxe uma malga de barro fumegante que poisou no meio.

-Rodrigo, passa a colher à tua prima.

não havia mais pratos. esperou para ver como era.


como num ritual. cuidadosos, em silêncio, cada um se servia devagar do seu lado da malga. ninguém tocava a comida de ninguém.

comeu com eles e sentiu-se tão bem como se sentem os que fazem a primeira comunhão.



in


- atão não é que comeste mesmo? estava bom, filha?
- estava tia!
a tia sorriu, aliviada.
- olha, come o António os pipis quando chegar.
e foi pôr o prato sobre uma panela de ferro. que sempre fervia água no brando lume de lenha.

comera à mesa redonda.

11 passos

Blogger Andre_Ferreira andou...

Os ares do campo abrem o apetite a qualquer um! :)

Beijinhos

segunda mai. 09, 12:27:00 da tarde  
Blogger wind andou...

:))))beijos

segunda mai. 09, 01:50:00 da tarde  
Blogger Papo-seco andou...

Tá lindo. PORRA!!!

:)

segunda mai. 09, 02:19:00 da tarde  
Blogger Unknown andou...

no fundo era isso que estavas a precisar. de voltar ao teu alentejo e de te deixar de finesses de citadina :) beijos M.

segunda mai. 09, 03:12:00 da tarde  
Blogger VdeAlmeida andou...

Hum...ainda bem que vou agora jantar :-) Beijos, M

segunda mai. 09, 08:20:00 da tarde  
Blogger José Alexandre Ramos andou...

eu já não sei o que diga. sei é que quero mais. senão choro.

segunda mai. 09, 09:27:00 da tarde  
Blogger r.e. andou...

que viagens sentimentais se anunciam aqui. voltarei com mais desejo. obrigado pela visita à minha Madrugada. beijo. J.

segunda mai. 09, 11:59:00 da tarde  
Blogger Fata Morgana andou...

Gosto muito deste género de textos. Lembram-me belos serões de cavaqueira e petiscadas, pequenos desgostos de adolescente (tragédias, isso sim!) que hoje sabe tão bem recordar :)

terça mai. 10, 12:11:00 da manhã  
Blogger Madalena andou...

Vocês são é uns amores de gente.

:)

Bjs.

quarta mai. 11, 01:09:00 da tarde  
Blogger batista filho andou...

Depois de muito conversar sobre fatos interessantes envolvendo "comida", Soares Feitosa, poeta e contador de histórias da terra do meu pai, instou-me a escrever sobre um caso que lhe contei. Espero que goste. Caso desconheça algum termo diga, certo? Vamos a ler:

Estando eu na Ilha dos Mutuns, delta parnaibano, sucedeu ir passar uns dias num povoado, Cal, que fica numa ilha vizinha, por nome Grande de Santa Isabel. Destino certo: a casa de minha madrinha, cujo pai, João, primo de minha mãe Dadinha, foi me buscar no lombo do Branco (que de branco não tinha nada), cavalo cinzento salpicado de manchinhas cor de carvão, mais bonito, até então, nunca visto. Entre uma ilha e outra, no trecho mais estreito, um igarapé, que bicho-gente transpunha por sobre uma ponte de dois paus e bicho-bicho, no caso, cavalo cinzento salpicado de manchinhas cor de carvão, arreios tirados, atravessou nadando... Arreado o danado outra vez, e num toca que chega, em meio ao areial e cajueiros sem conta, chegamos, por fim, quando a boca da noite engolia os últimos suspiros do sol. Depois do asseio, atendendo ao chamado de minha madrinha, fui jantar. Nesse ponto, tem sempre algum gaiato que pergunta: - E madrinha: tem nome não? – não, não tem. Madrinha é madrinha. Só! Bem, nem tanto: houve uma que atendia por nome, nome de flor, mais que flor, Rosa, sem jardim, sem igreja, só careceu duma fogueira e nós ao seu redor, repetindo três vezes: - “São João disse, São Pedro confirmou, serás minha madrinha (serás meu afilhado), porque São João disse... e São Pedro confirmou”. Vez por outra, quando lembro dos que se foram, inda me pego dizendo – “bença, madin’a Rosa”. Reatando o fio do novelo, digo do jantar (entre pessoas que não conhecia bem, com uma única exceção), em meio a tanta coisa que eu gostava: tapioca, macaxeira, cuscuz (de milho e de arroz), manteiga de nata, café, leite, queijo, requeijão... pra meu pesar, madrinha, logo ela! me perguntou se queria suco de murici... Fosse de manga, caju, bacuri, laranja, limão, cajazinha, ah, como eu teria gostado! Mas de murici, que sempre detestei?! Inda não tinha aprendido a dizer “não”. E me vi naquela enrascada: um copão de alumínio, dos grandes, acima do meio de desgosto, bem à minha frente. Encabulado, via um tantão de coisa boa: tapioca, macaxeira, cuscuz (de milho e de arroz), manteiga de nata, café, leite, queijo, requeijão, farinha de puba... Farinha de puba! Envergonhado, sem saber o que fazer, disse que gostava mesmo era de farinha de puba no suco. Coloquei uma colherada, mais outra, mexi, mexi... E a farinha foi inchando, inchando... À proporção que aquela gororoba inchava, qual maré enchente, que primeiro lambe a parte mais baixa dos barrancos, retrocede um pouquinho, e avança mais e mais, até preencher por completo o leito dos igarapés e rio – as lágrimas dentro de mim se avolumavam. D’um olho, o primeiro pingo no copão de alumínio. Mais outro. Outros mais. Maré cheia. Minha madrinha e a parentada, aflitas, indagavam o porquê de tanto choro. Só consegui falar - “Mamãe, mamãe, quero mamãe!” Minha mãe não tive naquela noite não, porém, João me prometeu e cumpriu: dia seguinte, o sol bocejando, seguimos de volta pro aconchego de mamãe, na Ilha dos Mutuns. Faz tempo: anos!... mais de quarenta.

quinta mai. 19, 12:17:00 da tarde  
Blogger Madalena andou...

Lindo.

Com toada de Guimarães Rosa.

Brigada, viu?

:)

quinta mai. 19, 12:28:00 da tarde  

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