letra inglesa
old parker
a caneta poisada sobre a secretária preta parecia esperar.
onde teria ele comprado a secretária de mogno? não era rico, nem muito pobre, valha a verdade. mesmo assim não era uma secretária comum para um homem como ele.
não se lia e escrevia como hoje. nem sequer se pensava em computadores. sonhava-se com robots que um dia viessem a fazer o trabalho pesado. sonhava-se e ria-se do sonho.
o homem loiro tinha uma letra bonita, inclinada, inglesa. lia muito e era admirado por isso.
estranho? hoje é.
vinha gente pedir-lhe toda a espécie de cartas, era o escriba da terra e em regime de voluntariado. à época também os havia recebendo, é natural, era a sua função na sociedade.
- é para o meu filho, está lá longe, escreva o que quiser, coisas bonitas.
e ele escrevia. coisas felizes de deixar os olhos rasos de lágrimas de comoção a quem lhe recebesse as letras desenhadas. antes, lia a carta a quem a enviava.
- ele há-de gostar. era assim mesmo que eu gostava de saber dizer as coisas. ele aprendeu a ler. por isso está lá longe a lutar por melhor vida. não sei se volta... já tenho netos, sabe?
muitas cartas escreveu o homem loiro. nem sempre tão alegres. às vezes cabia-lhe informar da partida definitiva de alguém.
- eu podia mandar um telegrama nos correios, mas o senhor sabe como é... quando chega um telegrama sabe-se logo que é desgraça. assim lê devagar. não precisa cá vir. nem ela tem dinheiro p'rá viagem...
o escriba ia, agilmente, passando a sua parker nas folhas de papel, à noite. depois de trabalhar no duro, todo o dia.
mas também lhe cabia ler o resultado das cartas que enviava. escrevia e lia a vida alheia para que a comunicação nunca parasse.
não era de estranhar que tivesse um pombal cheio de pombos-correio que soltava à tardinha e via voar em grandes círculos, até o som do milho os fazer regressar.
- o pai é o pombo correio desta gente.
deu a filha em pensar.
8 passos
Subitamente ou talvez não
lembrei o Cyrano de Bergerac
:) :) :)
:)))) Mais uma vez escreves de uma maneira tão linda que se visualiza tudo:) beijos
"É um grande privilégio ter vivido uma vida difícil. (Indira Gandhi)"
Não tem nada a ver com este post, mas com a epígrafe do blog: de quem falava Indira Gandhi? Não dela certamente!
Para mim a frase tem sentido. Tinha de dizer a quem de facto pertenceu.
O resto, é superfície.
:)
"É um grande privilégio ter vivido uma vida difícil. (Indira Gandhi)"
para mim também
a frase tem sentido.
A frase também pode ser colocada neste post * letra inglesa *, servindo de reflexão para alguns aspectos interessantes.
- uma vida difícil!
será que,
para Indira Gandhi é um privilégio ser
analfabeto?
:)
Linda estória esta, Madalena! Gostei muito talvez porque me lembro de pessoas assim que escreviam as cartas de toda a gente, na aldeia onde vivi em pequena. :) Beijinhos
Quando abres a caixinha das recordações, em revoada as lembranças voam pra tudo quanto é lado. Toda lembrança puxa outra... e se, num determinado momento não fecharmos abruptamente a caixinha, com a chave do momento presente, podemos, quem sabe? até esquecer de tudo o mais e nos perder de vez no passado, e ser, de nós mesmos, somente mais uma lembrança, numa caixinha de recordações.
Divaguei, divaguei, quando só queria dizer que as tuas rememorações partilhadas libertam as nossas próprias lembranças, que assim entrelaçadas ganham novas interpretações.
Papai tinha uma caneta tinteiro. Sua letra também era bonita. Gostava de poesia... A casa era alugada, mas a estante, repleta de livros, era o seu/nosso tesouro.
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