12 maio 2005

"são rosas, senhor..."

cada mudança de emprego era mais uma mudança de casa.

disso não gostava. habituava-se aos espaços, aos amigos. não não era a rotina. disso ainda hoje não gosta mas lá a vai levando. é a vida...

- mas filha, é para uma casa maior, vocês estão a crescer e fica mais perto do trabalho do pai.

ela sabia como ele trabalhava para que as irmãs estudassem e, calava.

na casa nova o quintal tinha árvores: uma laranjeira cheia de picos e uma árvore de alperces já crescida.

- isto tem picos e as laranjas são mirradas, pai.

- nem tentes comê-las. quando chegar a altura o pai enxerta a árvore e verás.

- que é que acontece?

- nasce um ramo que já não é bravo e a laranjeira dá laranjas doces. hás-de ver.

e viu. o pai sabia como resolver tudo. era tão bom!

ele andava de moto, gostava muito. era uma scooter, a pantera negra como lhe chamava. fizera no quintal uma garagem de tijolos para a guardar da invernia. um espaço grande. dividira-o ao meio. do outro lado era galinheiro.

como é que ele podia passar um domingo sem discutir com as galinhas?

- estúpidos animais! lá me foram às alfaces outra vez!

- são estúpidas mas abriram a porta, pai. (ria ela baixinho).

- abriram nada! alguém a fechou mal...

quando ele estava assim não valia de nada continuar o assunto. era uma relação privada entre ele e as galinhas. mas, quando a mãe queria uma para a panela:

- não, Bia, esta ainda está a dar ovos, esta não!

e não fora a mãe, pelas costas, cortar-lhes o pescoço e fazer fricassé, morreriam de velhas. era muito bom o fricassé e ele aí esquecia.

tinha aprendido a escrever, a rapariga. na escola claro e muito pelos poemas que o pai à noite, depois de se lavar do pó de pedra, escrevia até a mãe o arrastar para a cama.

havia ainda o caixote de livros que, de mudança em mudança os ia acompanhando e ela lia.

entenderia? às vezes quase tudo. outras lá teve, mais tarde de os reler. mas de todos ficavam as palavras a compor frases, a dançar-lhe na cabeça, até a obrigarem a deixá-las sair.

por isso, naquele quintal novo, escolhera o tecto alto da garagem para se isolar. trepava ao longo do muro. depois ia sentar-se a comer alperces e a juntar letras de sentir.



in


depressa foi descoberta pelos outros putos, os dos assaltos à fruta dos vizinhos.

- manda um! manda um!

- já vai. calem-se! se a minha mãe vê não me deixa voltar...

- manda! manda!

como ela conhecia o gosto da fruta assim, quente e por lavar! e atirava a cada um seu alperce. dia a dia.

- que é que estás a atirar fora, rapariga?

- nada mãe.

- nada não, que eu bem vi!

- eram bolas de papel que tinha já rasgado.

- tu não estragues a fruta com essa vadiagem. o raio da rapariga!

- era só papel, mãe. era só.

mentira.

pois, às vezes é preciso. se até a santa isabel mentiu...





ela de santa nunca teve ou terá nada. sabia era que agora chegara a sua vez de repartir.

5 passos

Blogger VdeAlmeida andou...

Esta foto aqui em cima é uma maravilha :-) Da escrita...gosto sempre.
Beijos meus

quinta mai. 12, 12:31:00 da tarde  
Blogger batista filho andou...

Quando a gente cutuca uma lembrança, é que nem mexer num vespeiro: elas, as lembranças, assim como essas, as vespas, nunca vêm sozinhas. Quanto mais mexemos, mais aumenta o alvoroço no vespeiro, das idéias e das vespas. Voam em tudo quanto é direção. Por isso, ao ler “São rosas, Senhor!”, mesmo sem ser tempo de rosas, são rosas sim, retiradas das lembranças presas na memória, sempre à espreita de um entreabrir d'uma janela. # As tuas lembranças, repartidas tão generosamente, somam-se às minhas... mas aí, já são outras lembranças, histórias outras, a contar. # Um abraço fraterno.

quinta mai. 12, 01:56:00 da tarde  
Blogger Madalena andou...

Yardbird, não me gabes que ainda me babo toda. LOLOL ;) Bj


BF, fico esperando as suas memórias. Blog é coisa simples de fazer. Dificil seria escrever mas é óbvio que não é o seu caso.

:)

Abraço.

quinta mai. 12, 02:25:00 da tarde  
Blogger José Alexandre Ramos andou...

nem digo mais nada, Madalena, só que água mole em pedra dura tanto bate até que fura... eu queria tanto um livro assim para andar sempre com ele e ler para mim e para outros estas pérolas!
(afinal, repito-me, não é? culpa tua, por escreveres tão bem). sem lamechices ou elogios de trazer-por-casa: este, no momento, é o blog que mais prazer me dá vir ler diariamente. Se eu sorrisse assim tanto durante o dia como quando te leio...

quinta mai. 12, 11:15:00 da tarde  
Blogger Madalena andou...

José Alexandre R. eu a ti também já só sorrio.

:) :) :)

Obrigada.

Beijos

Madalena

sexta mai. 13, 09:14:00 da manhã  

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