"são rosas, senhor..."
cada mudança de emprego era mais uma mudança de casa.
disso não gostava. habituava-se aos espaços, aos amigos. não não era a rotina. disso ainda hoje não gosta mas lá a vai levando. é a vida...
- mas filha, é para uma casa maior, vocês estão a crescer e fica mais perto do trabalho do pai.
ela sabia como ele trabalhava para que as irmãs estudassem e, calava.
na casa nova o quintal tinha árvores: uma laranjeira cheia de picos e uma árvore de alperces já crescida.
- isto tem picos e as laranjas são mirradas, pai.
- nem tentes comê-las. quando chegar a altura o pai enxerta a árvore e verás.
- que é que acontece?
- nasce um ramo que já não é bravo e a laranjeira dá laranjas doces. hás-de ver.
e viu. o pai sabia como resolver tudo. era tão bom!
ele andava de moto, gostava muito. era uma scooter, a pantera negra como lhe chamava. fizera no quintal uma garagem de tijolos para a guardar da invernia. um espaço grande. dividira-o ao meio. do outro lado era galinheiro.
como é que ele podia passar um domingo sem discutir com as galinhas?
- estúpidos animais! lá me foram às alfaces outra vez!
- são estúpidas mas abriram a porta, pai. (ria ela baixinho).
- abriram nada! alguém a fechou mal...
quando ele estava assim não valia de nada continuar o assunto. era uma relação privada entre ele e as galinhas. mas, quando a mãe queria uma para a panela:
- não, Bia, esta ainda está a dar ovos, esta não!
e não fora a mãe, pelas costas, cortar-lhes o pescoço e fazer fricassé, morreriam de velhas. era muito bom o fricassé e ele aí esquecia.
tinha aprendido a escrever, a rapariga. na escola claro e muito pelos poemas que o pai à noite, depois de se lavar do pó de pedra, escrevia até a mãe o arrastar para a cama.
havia ainda o caixote de livros que, de mudança em mudança os ia acompanhando e ela lia.
entenderia? às vezes quase tudo. outras lá teve, mais tarde de os reler. mas de todos ficavam as palavras a compor frases, a dançar-lhe na cabeça, até a obrigarem a deixá-las sair.
por isso, naquele quintal novo, escolhera o tecto alto da garagem para se isolar. trepava ao longo do muro. depois ia sentar-se a comer alperces e a juntar letras de sentir.
depressa foi descoberta pelos outros putos, os dos assaltos à fruta dos vizinhos.
- manda um! manda um!
- já vai. calem-se! se a minha mãe vê não me deixa voltar...
- manda! manda!
como ela conhecia o gosto da fruta assim, quente e por lavar! e atirava a cada um seu alperce. dia a dia.
- que é que estás a atirar fora, rapariga?
- nada mãe.
- nada não, que eu bem vi!
- eram bolas de papel que tinha já rasgado.
- tu não estragues a fruta com essa vadiagem. o raio da rapariga!
- era só papel, mãe. era só.
mentira.
pois, às vezes é preciso. se até a santa isabel mentiu...
ela de santa nunca teve ou terá nada. sabia era que agora chegara a sua vez de repartir.
5 passos
Esta foto aqui em cima é uma maravilha :-) Da escrita...gosto sempre.
Beijos meus
Quando a gente cutuca uma lembrança, é que nem mexer num vespeiro: elas, as lembranças, assim como essas, as vespas, nunca vêm sozinhas. Quanto mais mexemos, mais aumenta o alvoroço no vespeiro, das idéias e das vespas. Voam em tudo quanto é direção. Por isso, ao ler “São rosas, Senhor!”, mesmo sem ser tempo de rosas, são rosas sim, retiradas das lembranças presas na memória, sempre à espreita de um entreabrir d'uma janela. # As tuas lembranças, repartidas tão generosamente, somam-se às minhas... mas aí, já são outras lembranças, histórias outras, a contar. # Um abraço fraterno.
Yardbird, não me gabes que ainda me babo toda. LOLOL ;) Bj
BF, fico esperando as suas memórias. Blog é coisa simples de fazer. Dificil seria escrever mas é óbvio que não é o seu caso.
:)
Abraço.
nem digo mais nada, Madalena, só que água mole em pedra dura tanto bate até que fura... eu queria tanto um livro assim para andar sempre com ele e ler para mim e para outros estas pérolas!
(afinal, repito-me, não é? culpa tua, por escreveres tão bem). sem lamechices ou elogios de trazer-por-casa: este, no momento, é o blog que mais prazer me dá vir ler diariamente. Se eu sorrisse assim tanto durante o dia como quando te leio...
José Alexandre R. eu a ti também já só sorrio.
:) :) :)
Obrigada.
Beijos
Madalena
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