a minha vizinhança é o máximo! graças a Deus!
tenho os do museu de arte antiga, que lá por estarem todos mortos já, não deixam de ser ilustres, pelo contrário. só se é mesmo importante depois do acto heróico de morrer.
«A Morte de Camões», por Domingos António de Sequeira
não me dou muito com eles, porque estão sempre a dar vezniz no chão do museu e eu tenho alergia. além de que me arriscava a ser internada se me vissem a falar com o Camões no seu catre, mais para lá que para cá.para ser internada acho que é cedo, embora seja uma boa opção para uma velhice com conversas interessantes e medicação grátis.
depois, ali pertinho, há o Jorge arrumador, mas sai caro em cigarros. trata-me é por drª. descobri-lhe um pé em início de gangrena e lá subi na escala social do bairro.
o bairro, ele mesmo, é protegido. não perguntem de quê porque eu não sei. de ratos baratas e ladrões, não é. mas pronto, se o ippar diz, está dito e não se fala mais nisso.
os preços das casas não foram protegidos, deve ser daí.
mas os vizinhos. ah, nenhum é melhor do que os meus!
sem incluir na vizinhança um cómico novo rico, que gosta de trufas. ora isso também os porcos e nem por isso eu me vou por a falar com um tó qualquer...
falo dos outros, dos reais, das reais vizinhas. todas filhas ou netas de varinas. ainda de ouro guardado em atados lenços brancos, para pôr no prego em dia de má sorte. essas varinas!
agora mudou-se uma para o aburguesado bairro antigo, da velhinha lapa. veio da madragoa. ninguém a avisou que lá já não se é varina, quando muito é-se filha de ex-varina e... olha lá!
então é ouvi-la apregoar dia ou noite:
- ó sua cadela, deixa de andar atrás do cão do meu marido que ele não está com o cio, tu é que andas saída a toda a hora!
isto, com voz de se ouvir até na trafaria. tom cristalino de quem apregoa carapau fresquinho.
dentro da minha casa restaurada, por fora, com tabuinhas verdes, oiço-a a sorrir.
grande povinho o meu! ainda não está todo congelado como o bacalhau da noruega.