25 novembro 2005

THE END.


Sem qualquer intenção de regressar aos blogs, despeço-me de todos com carinho.

O mundo está sempre em mudança e o meu mundo não é nisso excepção.

Continuarei, sempre que possa, a visitar quem costumava.

Para escrever, se me fizer muita falta mesmo, voltarei aos blocos quadriculados de sempre.

Até breve.

Madalena.

20 novembro 2005

Na minha rua só há gente séria, acreditem.

a única pessoa que se ri, sou eu.
cheguei já tarde não vou tentar mudar ninguém, mas cá vou rindo que a vida é um minuto e trinta segundos já passaram.

na rua as mulheres andam pouco. só de loja em loja. é lá que o jornal da caserna se lê em alta voz, ou baixa, dependendo isso de quem entra a seguir.

o resto vê-se das varandas dos páteos, por detrás das cortinas ou de porta aberta fingindo varrer.

by Victor Ivanovski.


- ó Tó, ainda você diz que está tudo caro. aquela senhora vem cá à tasquinha buscar comida para a família toda. eu não fazia isso se não fosse sozinha. vive-se bem por cá...

- mas qual senhora? não vi entrar nenhuma.

...dinheiro fácil não dói a gastar.

- ah... mas ela tem marido, ele não dá por nada?

- foi ele que a ensinou e vive dela. de que é que se havia de queixar?

ela, a tal senhora não senhora deve ter sonhado sair dos muros e dos corredores velhos, lendo livros de capa azul, comprados ao Tó.

um dia terá achado sexy aquela maneira de soprar o fumo e as promessas de amor. fugiu de casa.

aprendeu a ser esperada à vez, em recantos e cais.

filipe wiens

um dia amou e deixou nascer um filho. depois teve uma filha do marido, a essa bate.

está gorda e gasta. só o decote e a saia absurdamente curta, dariam o sinal mas, até isso é moda.
ninguém a cumprimenta a não ser eu.

mas eu já disse, não sou séria, nem nunca hei-de ser, gosto de rir.

os corredores continuam velhos, o bairro continua ali e baniu-a.

na minha rua é tudo gente séria.

ah se as pedras que pisamos conseguissem falar!

Dave Adams

18 novembro 2005

não sou bairrista

Jefe Indio por Barreda

mas tenho um orgulho especial em ter um índio real e vivo, por vizinho.
como escapou aos americanos e espanhóis não é mistério, veio para Portugal e nós matamos menos. muito menos. só não temos cá búfalos porque não havia. em extinção só os burros, (essa eu não entendo, vivo cercada deles.) os lobos e o lince da malcata.

mas índios, só conheço o do jardim, da rua, da associação. índios, só no meu bairro.

este anda de tronco nu, usa penas e o rosto pintado. a pintura varia com os dias. fala sozinho rua fora e alto, a ponto de se ouvir em casa de vidros duplos, como a minha. parece feliz, alegre é.

morella jimenez.

no verão, tira os sapatos e deita-se num banco do jardim, no meio do turismo. cai que nem uma rocha, num sono sem mistério.
quando acorda, calça-se metódico e ergue os braços na direcção do sol, virado para o rio. saúda tudo: o dia as árvores o cristo-rei e o jardel.

- esta já eu curti! agora é a segunda, depois a terceira e depois... dormitório!

ri. gargalhada solar.

parte direito à tasca, numa indiferença de senhor do mundo.

quem se meter com ele tem resposta pronta e sem rodeios. vernáculo de doer!

é que este índio é do meu bairro e, português.

17 novembro 2005


não quero passar nada a ninguém. que presunção seria.

só que a minha cadela ficou triste e isso me doeu. triste porque antes de vir para aqui atendi uma chamada. porque não peguei no brinquedo que ela trouxe, para medir forças comigo e eu a deixar ganhar.

ladrou para o telefone até eu não ouvir e fui pô-la lá fora, em vez de lhe dar o que ela sempre dá, carinho amigo e são.

tirou-me a mão do teclado mas não lhe fiz tantas festas quanto devia, e ela merece um mundo de carinho.
por ficar em casa à minha espera. por ladrar à chata da vizinha, áquela só, a da filha solteira. por permitir que me deite tarde ao sábado e não fazer barulho antes das 11 horas, no domingo. por me chamar com meiguice se o despertador toca e eu não saio da cama e se ir deitar depois, a terminar o sono interrompido, para o bem da dona.

que mal soa aqui a palavra dona. somos donas as duas, que ela é dona de mim.

esta flor nascida num deserto quase, é para ela, que aceitou viver no deserto da minha própria vida.

já reconciliadas, não sabe que lhe escrevo e aninhou-se aos meus pés. pede tão pouco.

que pode ela saber da reestruturação (será a quinquagésima?) no emprego que tenho? ou da dor de cabeça que teima em não me deixar pensar sequer?

a dor dela sei eu, vi-lha nos olhos, passou toda para mim. desilusão de quem ama e não sente retorno.

perdoa lucky, és muito amada sim!

16 novembro 2005

O bairro rimado



No bairro não há só desgraça, há alegria
Animação quando ganha o Benfica
Emigrantes e filhos de grã finos
Peixeiras com seus enormes desatinos

E o Manuel da pastelaria, que não fia.

Há o Tó esquizofrénico, muito psicológico
Como ele diz de si na papelaria
Que abre e fecha à hora que para ele é lógico
E onde passa rigorosamente, noite e dia

E o Manuel da pastelaria, que não fia.

Há a Associação aonde vão
Em dias de jogo, drogados e poetas
Jornalistas e onde as mulheres não estão
Por causa das palavras menos rectas

E o Manuel da pastelaria, que não fia.

Há a bronca da minha vizinha e a filha dela
Que, por bem o merecer ficou para tia
Um electricista que tem sida
E a preserva em copofonia.

E o Manuel da pastelaria, que não fia.

Há quem não saiba sequer que eu lá moro
Há quem me ache burra por não ter amante
Há quem me considere senhora de decoro
E há burros que me dizem elegante.

E o Manuel da pastelaria, que não fia.

O Manuel não fia nem confia
O bolinho é com canela ou simples? – e pronto.
Serve escondido vinho ao balcão
Quer lá saber quem morreu ou teve cria!

Ali o pessoal despe a vida que tem ou gostaria.
Mas o segredo é a alma do negócio
E nem que digam que mataram a tia
O Manuel conta seja o que for, nas horas de ócio.

É que o Manuel da pastelaria, nunca fia.

15 novembro 2005

no meu bairro ainda se veste preto

quando morre alguém, sobretudo os mais velhos. os outros... bem os outros temem a morte na morte dos que vão. por isso afugentam pela cor a morte certa.

há ainda quem passe tão despercebido em vida, que não seja visto a não ser por morrer.

foi o caso do joão, chamemos-lhe isso.
o joão era um rapazinho bom quando menino, nisso há unanimidade das poucas vezes em que, agora, se fala dele.

entrou para a escola, era bonito, alegre, os mais velhos deram-lhe droga a experimentar. foram com ele roubar supermercados por aventura simples. desafio. nada que não tivessem podido comprar.

quando o joão se cansou, quis sair, não podia. sabia já demais: os locais, os contactos, a maneira de agir.

abandonado pela família , pelos antigos amigos, desistiu.

pegou a bicicleta, estava uma noite serena deste verão prolongado de 2005.

Wayne Wirs

pedalou ponte a fora. ninguém viu. minto, viu-o um pombo que entretido com as sobras do lixo português, não avisou ninguém.

olhou o rio com atenção, talvez pela primeira vez e mergulhou.

a bicicleta alertou a polícia que passava. estava legal. chamaram a família que se vestiu de preto e o chorou.

bike by boullie



liberto, o joão, deve estar a rir do luto agora, mas que importa?

no meu bairro morre-se depressa e em silêncio, como eu quero morrer.

11 novembro 2005

Cantiga - a arca da morte


Brian.

não só nesse dia
em outro qualquer
quiseram roubar-lhe
o que é ser mulher


abriram a arca
meteram lá dentro
os filhos roubados
o sol e o vento


cortaram-lhes as guias,
guardaram tão bem!
fecharam a arca
a chave quem tem?


mas ela sonhava
sabia sonhar
com o bico rombo
insiste em tentar.


abriu o ferrolho
da arca cerrada
alisou as penas
já amarrotadas.


ajustou-se a elas
sacudiu-as bem.
experiência de cria
nascida sem mãe.


abriu um sorriso
nem para o céu olhou
lançou-se no voo
ninguém a parou.
*
vem também mulher
que te sabes forte.
tempo para parar
virá com a morte.

02 novembro 2005

ontem foi um grande dia para os mortos

Arnold Böcklin

levantaram-se cedo, porque ele há quem madrugue nestas coisas de cumprir obrigações.

atravessaram de novo o rio, mas no sentido inverso, e voltaram às campas, para agradar aos vivos.
sacudiram os vermes dos caixões e lá se aconchegaram o melhor que puderam debaixo do mármore limpinho da véspera.

depois foi só ver chegar o pessoal, muitos de negro ainda, a aliviar a alma do peso de se esquecerem deles todo o ano.

afterimagegallery.com

nem todos de alma pesada, diga-se a verdade. muitos tristes. pensando encontrar ali alguma coisa mais do que guardam no coração e na memória.

a maioria para mostrar as flores caras que compra e criticar quem não o faz. sempre é uma maneira de passar o tempo...

- olha a campa do pai da Ana! tão abandonadinho, coitado! nem sequer uma flor...

os viúvos olham as viúvas mais novas com ar guloso e vice-versa. entabulam conversa.

nas ruas o silêncio cai como a chuva.

eu e a minha cadela guardámos esse silêncio na alma pelos que já perdi, e foram tantos! teria de voar para chegar a tanto cemitério...

depois dormimos uma sesta serena. porque não se ouvia uma mosca na rua. o ruído era nos cemitérios desta vez.

nem lembro se rezei. lembrá-los é já uma oração e, lembro-os sempre.

alguém deve ter dito sobre a campa dos meus:

- tão abandonadinhos!

se há algures outra vida, eles sabem que não. nem ontem nem em tempo algum que passe, os esqueço ou aligeiro do meu dia a dia, do peso sobre os ombros, que é viver sem eles.

ontem foi um dia cheio para os mortos e para os vivos. ainda bem.