THE END.

É um grande privilégio ter vivido uma vida difícil. (Indira Gandhi)
um dia terá achado sexy aquela maneira de soprar o fumo e as promessas de amor. fugiu de casa.
aprendeu a ser esperada à vez, em recantos e cais.
um dia amou e deixou nascer um filho. depois teve uma filha do marido, a essa bate.
está gorda e gasta. só o decote e a saia absurdamente curta, dariam o sinal mas, até isso é moda.
ninguém a cumprimenta a não ser eu.
mas eu já disse, não sou séria, nem nunca hei-de ser, gosto de rir.
os corredores continuam velhos, o bairro continua ali e baniu-a.
na minha rua é tudo gente séria.
ah se as pedras que pisamos conseguissem falar!
no verão, tira os sapatos e deita-se num banco do jardim, no meio do turismo. cai que nem uma rocha, num sono sem mistério.
quando acorda, calça-se metódico e ergue os braços na direcção do sol, virado para o rio. saúda tudo: o dia as árvores o cristo-rei e o jardel.
- esta já eu curti! agora é a segunda, depois a terceira e depois... dormitório!
ri. gargalhada solar.
parte direito à tasca, numa indiferença de senhor do mundo.
quem se meter com ele tem resposta pronta e sem rodeios. vernáculo de doer!
é que este índio é do meu bairro e, português.
pedalou ponte a fora. ninguém viu. minto, viu-o um pombo que entretido com as sobras do lixo português, não avisou ninguém.
olhou o rio com atenção, talvez pela primeira vez e mergulhou.
a bicicleta alertou a polícia que passava. estava legal. chamaram a família que se vestiu de preto e o chorou.
liberto, o joão, deve estar a rir do luto agora, mas que importa?
no meu bairro morre-se depressa e em silêncio, como eu quero morrer.
nem todos de alma pesada, diga-se a verdade. muitos tristes. pensando encontrar ali alguma coisa mais do que guardam no coração e na memória.
a maioria para mostrar as flores caras que compra e criticar quem não o faz. sempre é uma maneira de passar o tempo...
- olha a campa do pai da Ana! tão abandonadinho, coitado! nem sequer uma flor...
os viúvos olham as viúvas mais novas com ar guloso e vice-versa. entabulam conversa.
nas ruas o silêncio cai como a chuva.
eu e a minha cadela guardámos esse silêncio na alma pelos que já perdi, e foram tantos! teria de voar para chegar a tanto cemitério...
depois dormimos uma sesta serena. porque não se ouvia uma mosca na rua. o ruído era nos cemitérios desta vez.
nem lembro se rezei. lembrá-los é já uma oração e, lembro-os sempre.
alguém deve ter dito sobre a campa dos meus:
- tão abandonadinhos!
se há algures outra vida, eles sabem que não. nem ontem nem em tempo algum que passe, os esqueço ou aligeiro do meu dia a dia, do peso sobre os ombros, que é viver sem eles.
ontem foi um dia cheio para os mortos e para os vivos. ainda bem.
«A Morte de Camões», por Domingos António de Sequeira
não me dou muito com eles, porque estão sempre a dar vezniz no chão do museu e eu tenho alergia. além de que me arriscava a ser internada se me vissem a falar com o Camões no seu catre, mais para lá que para cá.at ypothetical.net
sem promessas literárias, que escritora não sou nem sequer para tal sinto vocação. comunicando apenas.
seja qual for a forma e como eu o souber, comunicando.
até já.
era quase noite. era ainda dia. vinha a escuridão da estrada vazia.
a menina andava com passos pequenos quase que corria.
- anda Lena, vamos que se acaba o dia.
- ainda falta muito?
ninguém respondia.
ao lado da mãe, não seria medo bem o que sentia, era já cansaço.
- mãe, leve-me ao colo!
a mãe não podia que levava as compras que sempre fazia na vila de sintra perto onde vivia.
mas o perto é longe quando se é pequeno e as pernas tão magras e os braços também. bem que ela os batia como asas ao vento procurando impulsos que a livrassem rápido daquela agonia.
era quase noite. era ainda dia.
só temia o longe do negro que via na estrada vazia.
- mãe, leve-me ao colo!
- não vês que não posso?
ela bem que via. no primeiro troço ainda a levara à ilharga, a mãe, mas era o carrego mais do que devia.
- tenta andar, filha.
porque iam a pé? camioneta havia, mas fora de tempo, já fora do dia. perdida que fora a dentro da hora, não podiam já esperar pela outra que atrás viria. era muito à noite quase ao novo dia...
- se o teu pai tem vindo...
o pai não viria. trabalhava tanto por tudo o que queria, que era dar às filhas o melhor que havia.
olhava o caminho, tão longo parecia. estrada infinita negrinha negrinha. o alcatrão quente quase derretia que o verão era forte. pesavam-lhe os pés o corpo doía.
súbito parou.
- não posso mais, mãe!
o rio de lágrimas molhava-lhe o peito da cara escorria.
- dói-me os calcanhares dos braços, não posso!
o ranho caía.
- não abanes tanto as mãos, não sabes andar?
era dura a voz era dura a mãe era a vida dura e ela não sabia.
só sabia o negro da infinita estrada. irreal ao vê-la.
- não posso mais, mãe...
e a mãe carregou mais aquele fardo. pequeno talvez mas era já mais do que a mãe podia.
era quase noite. era ainda dia.
ela adormeceu e de mais não lembra . como o lembraria se chegada a casa ainda dormia?
Rafael journeys underwater
regresso. nem triste nem alegre, ainda com medo de perder a paz que permitiu que espelhasse nas águas um sorriso e apoiasse nas nuvens o cérebro cansado.
passo a passo regresso a uma rotina nunca amada por não ser a escolhida.
quem me fez actriz não me fez o favor de me permitir continuar a sê-lo.
assim vivo entre o sonho do que sonho e a realidade que me parece sonhada em noite de menos abundância de alegrias.
não me queixo. não devo.
olho à minha volta e vejo os outros. se isso não me consola adverte: pára, escuta, olha!
e páro e escuto e olho. assim é fácil agradecer o que se tem.
cá vou agradecendo. vou sorrindo.
passo a dizer bom dia a toda a gente que trabalha ou descansa ou está desempregada.
tudo é transitório na vida. absolutamente tudo!
que os a quem mais a vida dói neste momento, nos olhem como gente que lhes abre o sorriso de uma manhã azul como a que eu vi a caminho do trabalho, manhã ainda fresca...
urge aprender a ser papoila, mesmo que seja flor breve, em tempo de aridez.
apetece dizer: bom dia meu Portugal magoado!
mesmo sabendo que Portugal não passa por aqui.
e assim foi.
se ficaram danados?
ora, tá-se vendo que sim. tinham perdido 48 horas, que eram oiro, os cabrões!"
- pronto. agora estou certo. não gravei mais nada.
tu que tens? tens lágrimas. mas isto já lá vai muito tempo...
- eu sei. eu sei.
- então?
- nada. e o velho? voltou a vê-lo?
- não. foi aí que sumiu como te disse.
- quem seria? quem podia saber e estar ainda vivo?
- mas de que falas tu? agora sou eu que não entendo...
- desculpe. é que eu conheço essa história que o velho lhe contou. o genro era o meu pai e quem o salvou, o ti agostinho, era meu avô. entende?