28 abril 2005

passei por aqui...


se precisas de ter uma bandeira

espelhá-la num exuberante brilho

do olhar com que fazes a fronteira

dos que podem pisar o mesmo trilho



se tens o braço cansado de a erguer

e ela tem do arco-iris toda a cor

se por brandi-la tiveste de sofrer

e não paraste por causa dessa dor



se te dobras e te ergues só por ela

se te apontam e acusam e se afastam

os que ao olhá-la não a sentem bela



alegra-te, qualquer que seja a idade!

usas na vida a difícil e singela

bandeira indestrutível: a Verdade.

22 abril 2005

Só volto uma semana depois de 25 de Abril por isso:

deixo aos que passam por aqui um poema que cantávamos em grupo e é intemporal:


em


É possível falar sem um nó na garganta
é possível amar sem que venham proibir
é possível correr sem que seja a fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem olhar para o chão
é possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros.
Se te apetecer dizer não grita comigo: Não.

É possível viver de outro modo.
É possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. é possível o pão.
É possivel viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre
.

Manuel Alegre, O canto e as armas

Ao meu amigo Tiago que já não viu o 1º de Maio de 75


in

- madalena, é pá tás acordada?

- se não estava acordaste-me. diz lá.

- 'tou em lisboa e não me deixam passar para oeiras. há tanques na rua. tropa por toda a parte.

- de que lado são?

- só podem ser do nosso. só podem, pá!

- deus te oiça caramba! estou toda arrepiada!

- liga o rádio clube português, rápido!

se eu souber mais alguma coisa ligo-te. bem... se a inda houver telefones.

um grande beijo!

- beijos. obrigada tiago. muito obrigada mesmo!


(telefonema recebido na madrugada de 25 de abril de 1975)

foste buscar a namorada a espanha para o 1º de maio. deste boleia a um soldado.

- foram encontrados mortos os 2, já perto da fronteira. um acidente...

- não!!!

mas fui à manifestação. era a primeira.


amo-te, meu irmão!


tendas e cores


in ARTE 2005

nas férias (e eram 3 longos meses sem escola...) tinha ela a liberdade da rua e do pinhal.

se esfolava os joelhos nas quedas ou silvedos, limpava-os com saliva e, se sangravam mais, estancava com qualquer papel velho que por perto encontrasse.

tudo menos a tintura de iodo e o ralhete:

- se fosses como a tua irmã e andasses com gente como deve ser, não te acontecia nada disso. só escolhes ciganagem, nunca hás-de ser ninguém!

não percebia bem. a irmã não tinha amigos, mas também a mãe não era para ouvir, sobretudo se falava da irmã.

a festa do verão era a chegada das tendas de carrinhos de choque e: o circo!

assim que passava a palavra. cada miúdo, reguila como ela, emergia da toca dos pais e corria como coelho, directo ao largo.

- é o circo?

- é o circo, é!

ficava por ali a ajudar a montar. depois eles deixavam que entrassem antes dos que pagavam. à tarde, claro, só à tarde, que os pais não podiam saber.

- olha que eles levam os meninos - assustavam as mães.

quem lhe dera a ela que a levassem! imaginava aquela vida livre, de terra em terra. ..
as aventuras que eles deveriam encontrar numa estrada recta e irrreal que ela via sempre que fechava os olhos!

não gostava senão dos trapezistas, dos cavalos e do palhaço que tocava serrote.

tanta cor!

quando partiam, era triste. ficava o espaço redondo, vazio, sem erva sequer, no lugar da tenda e das bancadas onde tanto pulara.

- se eu tivesse coragem...

nunca teve. ainda hoje lamenta.um bocadinho.


agora montam-se tendas dia a dia e quem quiser ver circo é só espreitar os escaparates de jornais. nem precisa comprar. lê os títulos coloridos e pelos tamanhos das letras descobre quem são os palhaços ricos e os pobres. depois é ir para casa ver a telenovela e ouvir uma mãe dizer a uma filha " assim nunca sobes na escada da vida..."

pois...

21 abril 2005

II História da Avozinha: caso casa Pia



numa dor lombar

bem somaticamente

tenho a carga anormal

da minha própria

natureza em fúria

revolta e revoltada.


e nem há analgésico

nem nada!

gostava de ciganos.




em

tempos de terras verdes.

tudo luzia às primeiras chuvadas. pastos e trigo nas terras bem lavradas lavavam-lhe os olhos do fumo da fábrica junto à escola.

o pai trabalhara muito e era menos pobre. tinha uma camioneta de trabalho coberta a lona.

normalmente iam os dois, de noite, caminho fora, alentejo adentro.

- vamos pela estrada das fontes, pai?

- tu e a água (sorria). vamos sim.

dessa vez foram todos, os 4 da família. era fim de semana, havia tempo.

zanga familiar (seria alguma das que ainda perduram? não se lembra.) fez com que não parassem em casa dos tios, na vila.

como cheirava bem! tinha chovido pelo caminho, uma daquelas trovoadas que deixam o ar lavado e a terra sensualmente fértil. amava aquele odor a terra, a rapariga.

aproximou-se a noite, até por fim chegar.

-não vamos para o monte acordar os velhotes. deitam-se com as galinhas e nem os avisámos.


- ficamos onde então? - a mãe ou a irmã?


- aqui.

-aqui?! - agora era a irmã. tem a certeza.

falava ele da planície que repousava já sob um manto de estrelas.

- há cobertores, não há? quem não quiser fica na camioneta. eu vou dormir cá fora.

- eu também posso. pai?

- podes pois.

- e os bichos?

- têm mais medo de ti do que tu deles e já estão a dormir.

não, não era verdade. quando o motor parou e todos se calaram. ouviu ela a vida a despertar para uma directa insólita.

nunca imaginara que a noite no campo tivesse tantos sons.

viu um lacrau por perto mas não chamou ninguém. perguntara uma vez ao avô se eram perigosos:

- se os pisares, são. e tu, se te pisarem, que é que fazes?

hoje gosta da noite, mesmo que na cidade. mas aquele silêncio-ruidoso de pequenas vidas não o ouve.


o escorpião? será por lembrar isso que ainda hoje não se deixa pisar?


20 abril 2005


in


não ter na vida mais que uma raiz tão leve
que possa suportar de aves o peso breve.

Farinha 33



a tia ana morreu cedo.

morrem cedo os que os deuses amam.

morava em almada e trabalhava muito. não tinha filhos. tinha os sobrinhos todos mas, os mais próximos eram ela e a irmã. não, também havia uma prima com um nome que toda a gente tinha dificuldade em dizer, a jorsélia, que estava num colégio em lisboa. aos 18 anos saiu e foi lá para casa.

enquanto o pai foi vivo a família era assim: uns pelos outros.

a tia ana, ia às vezes visitá-los com o tio carlos, o marido. era muito simpático. a rapariga magra gostava muito dele até ouvir numa conversa da mãe que ele batia à tia. passou a olhá-lo de lado. ele não entendia.

vinha sempre carregada de comida, a tia.

- não quero que falte nada às meninas!

ela bem gostaria que fossem brinquedos. bonecas não. bolas de borracha para atirar à parede vezes sem conta até deixar cair e depois, passar a quem esperava vez.

mas não. era sobretudo fruta e muitos pacotes de farinha 33.

- lena, tens de comer!

- não me apetece . tia...

- não queres ter um relógio?

acenava que sim sem qualquer crença.

- eles dão. é só juntar as tampas. é um relógio bom com rubis verdadeiros!

sabia lá ela o que eram rubis. mas passou a comer. é que ela, só ela sabia que o relógio da madrinha fada era uma fantasia que lhe doía por não ser verdade.

muitas papas comeu.

não há muito tempo viu numa mercearia antiga a tal farinha. não resistiu. comprou. foi para casa e tentou lembrar-se como a mãe fazia.

mas porque é que não sabia nada às milhentas papas que comeu até ter o relógio?

quando por fim recebeu o relógio, perguntou pelos rubis.

- estão lá dentro.

(e foi para isso que eu tive de comer! gaita!)

ela queria tanto poder ver o que eram rubis...

no entanto correu a mostrar à eliza:

- olha!

- eu também tenho um, vês?

- sim, mas o meu tem rubis!


ontem, sabe-se lá porque obscura razão, ao ver no telejornal a eleição do papa, só pensava em farinha 33.

19 abril 2005

com tanto telemóvel desta, o E. Santo não conseguiu entrar.

Cardinal Joseph Ratzinger of Germany has been selected by the Roman Catholic church as the new pope. Ratzinger chose Benedict XVI as his papal name. (CNN)




saía a correr da escola à beira tejo na hora das trabalhadoras da c.u.f. , saltava o ribeiro de sangue que corria ao ar livre vindo do matadouro. depois da primeira vez, já não olhava. a ideia de animais a sangrar agoniava-a, apertava-lhe o estômago que ficava como um punho fechado.

atravessava, a correr ainda, os carris dos comboios de mercadorias. barreiro.

tinha 12 anos e pernas compridas que galgavam muros.

porque é que corria?

por nada de terrível ou poético: saltar em branco uma paragem de autocarro sem perder a hora para poupar o dinheiro para uma pastilha elástica das que faziam balão.

- um dia ainda te estampas!

o condutor.

não lhe sorria. ela sorria pouco a pouca gente. atirava-lhe um olhar claro de "ande lá, arranque e cale-se!" e ia sentar-se num lugar vazio.

desta vez sentou-se ao lado um rapaz que via sempre. tinha olhar de "vitelinha mansa". era mais velho, para aí meia dúzia de anos . seguiram em silêncio sem se olhar.

saiu ela primeiro. prendeu-se-lhe o casaco comprido, azul escuro, que a mãe fizera. desceu.

no areal antes de casa meteu a mão no bolso. tinha lá um papel. tirou-o. era uma margem de jornal velho onde se lia:

"estou loucamente apaixonado por ti, madalena!"

leu mais 10 vezes até chegar a casa. depois rasgou-o.

foi a primeira declaração de amor que recebeu.


o rapaz não voltou mais à mesma hora.

- trabalha na fábrica do teu pai. soube e ficou com medo. - disse-lhe uma colega.

- cobarde!

não tentou encontrá-lo nem deixou de correr àquela hora.

a marca da pastilha já não lembra.

recorda bem o sabor excessivamente doce e a textura mole que se agarrava aos dentes, até poder fazer balões.



- posso ajudar, mãe?


havia que ir buscar a água à bica atravessando a vila.

ela ia com a mãe com uma cantarinha de nisa, com pedrinhas brancas. a água era tão fresquinha no verão, bebida assim.

a mãe enchia dois cântaros grandes. fazia uma rodilha de pano onde apoiava um. depois, sem se dobrar, pegava o outro que apoiava á ilharga com a outra mão.

a menina atravessava as ruas um pouco atrás, olhando a mãe que caminhava sem entornar uma gota até chegar a casa e, ser a própria fonte da família.

aprendeu assim a respeitar a água olhando, orgulhosa, a força de nascente que jorrava da mãe.


La Fonte

18 abril 2005

Iª história da avozinha



in

havia uma ursa já gorda malvada

enfardava tudo não sobrava nada

os salmões cresciam subiam o rio

saltavam, ficavam soltos no vazio

ela abria a boca comia comia

mas teimoso, novo o salmão subia.

queria ser crescido queria procriar

sabia lá ele daquele esperar .


mas a ursa gorda mesmo farta já

ficava parada do lado de lá

e quando enjoada nem podia mais

comia os cérebros e vísceras tais

que restavam só do jovem salmão

as sobres esventradas pobres de razão.



in


eu conheço a ursa como a minha mão

e um dia sai-lhe peixe-escorpião.

hiberna bem longe onde eu não te veja

ou sente o aguilhão na boca da inveja!


PS: é par ti é! não há mais ursos assim em Porugal.

quando era menina era pobre como o eram todos

os que não eram ricos, nesse tempo.

não tinha prendas boas de brincar pelo natal: meinhas brancas, às vezes uns sapatos e um pai- natal de chocolate.

tinha sempre um presépio replecto de amor e imaginação, que o pai fazia.

com a laranja ao jantar a dividir por quatro, lidava ela bem. por ela nem comia. e eram coisas dentro a portas fechadas . mas o natal...

havia o dia seguinte. as raparigas, as outras. filhas do merceeiro ou do médico tinham brinquedos para mostrar. ela, as meias branquinhas...

"que é que o menino jesus te deu? olha a minha boneca: fala. diz mamã e papá!"

"não foi o menino jesus foi o teu pai que comprou." ela espreitara o dela toda a noite na esperança de um brinquedo.

"e a ti? que é que te deram?"

mostrava o chocolate que guardara para a hora, as meias que não calçara para poder brincar sem as sujar, os sapatos (quando havia).

"só isso?"

"não. também recebi um relógio de ouro."

"onde é que está? mostra. mostra."

"está em casa. guardou-o a minha mãe para não o roubarem."

"quem é que to deu?"

" a minha madrinha fada!"

"não há madrinhas fadas."

"eu tenho uma!"

e tinha. ela nunca mentia. sabia bem do que falava.



quando ia à tarde esperar o pai, pulidor de mármore, pelo caminho pareciam brotar do chão uns lírios pequeninos amarelos. apanhava-os.

voltava de mão dada com o pai. feliz naquela hora.

até a chamarem para jantar destribuia as flores que a madrinha fada lhe dera.

por isso acreditavam.


"as crianças não mentem", tenho ouvido ultimamente muito.


ela só mentia pelo natal.

era pobre e não gostava nada disso. no natal. já disse: só no natal!

têm alguma coisa a censurar?

14 abril 2005

não ganho para fruta.


"Cut Pear" by"Linda Mears

quem não leu o estrela-doida (e era preciso paciência e mau gosto), não entende a minha fixação por melros.

na cidade há muitos. sei. mas mudei de belém para a lapa pobre e perdi os melros da araucária que tinha no jardim. fiquei pobrinha, pobrinha de morrer.

pensei uma artimanha: num inverno vai de deixar sementes no pátio descoberto e esperar para ver.

as sementes iam desaparecendo. seriam só pardais?

tenho porta de grades. coisas doentes de cidade a saque. passei a deixar as sementes num pratinho do lado de dentro. só a grade fechada.

numa manhã, a festa: acordei com um barulho esquisito, fiquei quieta, escutei, eram asas! atabalhuadas asas de encontro a tudo e um silvo de pássaro aterrado.

corri a abrir todas as janelas para o melro sair.

"nunca mais volta, assustou-se" pensei triste. pelo sim pelo não fui deixando e reenchendo o prato das sementes. que lixaria ele fazia estando eu fora!

às vezes poisava-me nos livros. outras via-se ao espelho se entrava pela janela. deixava rasto sempre. muitas, vinha espreitar-me, curioso até eu me mexer. era o carlitos.

desapareceu quando entrou a lucky, cadela de voz grossa como convém a uma dona que é contralto.

"não se pode ter tudo..."

comecei a por bocadinhos de pera sobre o muro.

são 3 os melros agora a dar-me lições de canto pela manhã. não entram. não são parvos.

parva fui eu.

e com a subida de tudo acima da inflacção onde é que vou arranjar dinheiro para fruta, digam lá?

13 abril 2005



Anne Karin

qual vagabundo apanho um jornal que veio no vento enrolar-se-me aos pés. já li muito. leio pouco agora. releio. mas um jornal, na caminhada e grátis... não rersisto.

"aqui estamos nós 115 homens que Deus chamou..."

a sucessão do Papa. é o nosso cardeal, gente da casa pois, quem fala. leio só um pouco mais.

atravessam-me memórias inquietações de tempos idos. não me concentro.

pode até haver Deus. pode até tê-los chamado. mas então porquê esta minha sensação de ao vê-los na sua pompa de sempre os achar tão longe do Cristo em que acredito ?

enquanto houver um estado do vaticano, enquanto os homens que nasceram com a indicação categórica de Deus de "ide e multiplicai-vos" tiverem de ter amantes escondidas ou limitar-se a sonhos eróticos que os martirizam duplamente, enquanto uma borracha extensível que poupa mortes horrorosas for pecado, eu não acredito que foi Deus que os iluminou.

talvez eu simplesmente não acredite em Deus se ele é o iluminador de tanto absurdo...

quem sabe?

mas já lá vai o tempo em que me preocupava muito. já vi 4 papas. e de padres... tanta coisa eu vi!

sigo o meu caminho pondo o papel num caixote que nunca há na estrada.

é manhã!

graças a Deus, é manhã!

12 abril 2005

sento para descansar e sem querer. sem querer mesmo, penso:

Dr. Pedro, porquê? porque saiu?






há por certo uma razão e forte.

há. que a vida ensinou-me a não ficar pela rama de nada. nem (ou sobretudo?) do que é título de vender jornais.

fico à espera.

já não perco a esperança.

a água corre para o mar. não anda para trás.





posso já ter partido mas, a rocha que me serviu de poiso, ficará.

continuará, mais tranquila do que eu, à espera.

a verdade merece todo o tempo, mesmo que ele seja maior que o meu.

a verdade.

quando? ela virá!

in

meio à profunda seca

é que a árvore recorre

à força de raiz.

todos os santos.

coberta com o manto de penas dos meus mortos continuo o caminho da vida.



Phoenix Plumes


morbidez? não.

não conheço outro lugar onde os encontre senão este, que foi onde os guardei. ensinem-me se houver.

é um pedido sério.

apresento-os aos meus vivos mais amados. faço um círculo de fraternidade.

assim é que me sei: de mãos dadas com quem é importante. não no cargo que exerce ou no poder que tem mas no que teve ao alterar a minha rota, tantas vezes quase a resvalar em curvas acentuadas demais e com graveto.

chegará o dia em que seja eu manto de alguém e me apresentem com algum orgulho?

porque não dizer? espero que sim. amei.

11 abril 2005


by JOHN BLAKE- LUXOR II

dou os primeiros passos nesta estrada.

decididos.

tenho pressa. caminho devagar.

irei aonde chegar.

destino?

- percorro o tempo que me falta sem parar, apenas. de corpo erecto e sem limos agarrados aos pés, descalços por prazer.

venho de muito longe.

vou.