28 junho 2005

de pés descalços, mudamos o rumo

na estrada para




minha casa de campo. ;)




FÉRIAS!

CIAO.

o poço.

" voltaram com lanternas cordas e uma escada, parecia que iam fazer a subida de um monte. ainda me dá risa de lembrar esta história.

olhe, aqui onde me vê, se tem sido outra gente a contar-ma dizia que era conto de ciganos. mas nã senhor.

e o velho agostinho fazendo-se de parvo, ganhando tempo:

- vocemecês são capazes de estar certos em ir a ver o poço. dizem que vai dar a meio da vila. que cruza com os túneis dos dois conventos o dos frades e o das freiras.
foi numa obra que descobriram isso. mas já os mais velhos o contavam. até esqueletos de inocentes encontraram. os malditos!

e enquanto cuspia para o lado, ria sem no verem.

era homem de fibra!

estiveram para lá horas e está-se vendo, não encontraram nada.

só que a essas horas já o genro e o filho estavam em espanha, no seguro.

palmilharam que se fartaram por esses montes de barrancos subindo o ardila.
caminhos de contrabando, claro está. o genro fora em busca do cunhado que mesmo sendo um bocadinho a puxar para o copito, era gente de bem e lá o safou.



in


e assim foi.

se ficaram danados?

ora, tá-se vendo que sim. tinham perdido 48 horas, que eram oiro, os cabrões!"



- pronto. agora estou certo. não gravei mais nada.

tu que tens? tens lágrimas. mas isto já lá vai muito tempo...

- eu sei. eu sei.

- então?

- nada. e o velho? voltou a vê-lo?

- não. foi aí que sumiu como te disse.

- quem seria? quem podia saber e estar ainda vivo?

- mas de que falas tu? agora sou eu que não entendo...

- desculpe. é que eu conheço essa história que o velho lhe contou. o genro era o meu pai e quem o salvou, o ti agostinho, era meu avô. entende?


olhe, olhe ali! a águia voltou!

27 junho 2005

foi então

foi então que de novo a voz se impôs e ambos escutaram esquecendo o olhar da águia na janela.

" à segunda já nã foram de manso. pareciam matilha a investir. a cat'rina, a filha, tinha querido mudar de lá o pai durante a noite, mas qual o quê!

- eu chego bem para eles. só faltava sair eu da minha casa e entregá-la à pide!

mostraram bem quem eram em entrando e vai de perguntar pelo genro de lisboa.

- atão não são de lá vocemecês? pensei que sendo me falassem dele.

sabem como é, um homem envelhece e lá se acaba o tempo para o vir ver. foi o que aconteceu. dele nem rasto. desde que veio de frança nã no vejo.

quando cá veio se vinha estranho? ora deixem-me cá pensar...
estranho nã diria. que estranho sempre ele foi. estoirado e de ferver em pouca água mas de bom coração.
esperem! tou vendo se me lembro de qualquer coisa diferente do costume. não é isso que querem?

e foi falando o meu compadre, ele que era de tão poucas falas, até quase os cansar.

- ná. aqui em casa estava eu. ele nã se atrevia a mexer no que fosse ou deixar nada sem que eu o soubesse. só se...

- só se o quê?

gritaram eles.

- só se quando foi ao quintal... ele ficou por lá. viu-o rondando o poço. mas ver ver, não vi mais que isso, não senhores.

eles deram um salto nas cadeiras como quem tem molas no rabo e foram porta fora dizendo que voltavam num instante.

mais do que isso não foi. que a tia augusta viu-os da soleira da porta ir e voltar."



Old Woman by Dan Jacob

- acabou?

- não mas quase.

- então porque parou?

- distraí-me quando a águia, de repente, voou.

os olhos.

- espere. olhe. olhe ali. depressa!

- tu tens pressa de tudo. é bom que te decidas.

- olhe primeiro e já procura a gravação. veja aqueles olhos que parecem espreitar pela janela.

são de uma águia. tenho a certeza. são!

- ...sim, também me parecem. mas uma águia daquelas por aqui? impossível!




Eyes of the Sky by Nance County, Nebraska

- quero eu lá saber dos impossíveis! estamos os dois a vê-la... investigue depois e olhe agora. onde estará poisada? parece estar só reflectida no vidro da janela. como se nos espiasse directamente do... céu.

- abre os vidros e ficas a saber.

- não. iria espantá-la se está perto. pela nitidez perto está, mas aonde?

- talvez tenha fugido...

- não parece. estaria assustada e está serena. como quem espera de nós alguma coisa.

- pronto, lá estás tu a sonhar...

- engraçado, a águia parece ter os olhos verdes. um verde acastanhado, como o meu.

- vais ou não querer ouvir o velho?

- agora ainda mais. não vê que é um sinal?

- sinal de quê? responde.

mas foi o silêncio que lhe respondeu.

26 junho 2005

o café.






- toma, bebe. não te vi comer nada e nem falaste. parecias distante o tempo todo.
pronto eu nao te faço esperar mais. vou buscar o gravador. não creio que lá encontres nada mais interessante do que já sabes, mas...

de novo a voz do velho encheu o espaço. como se estivesse estado à espera que a libertassem.

- homem estranho o meu compadre...

já depois de ter tido uma ataque que lhe apanhara este lado, salvo seja (ia-se indo dessa na fosse ele de cepa rija), ainda salvou o genro de ter mau destino na pide se o têm apanhado.
e olhe que o homem tinha-lhe aparecido em casa em busca de auxílio.

pobre velho! que podia ele fazer ali amarrado à cadeira, pensará vocemecê. engana-se.

engana-se o senhor e enganaram-se os que lhe cercaram a casa e lá bateram com conversa fiada.

gente estranha na terra, está a ver. as mulheres estavam todas ao postigo. viram-nos bater à porta de fato e gravata, gabardine no braço. a dar alguma coisa nã iam concerteza.

o agostinho disse à mulher para abrir. na nos mandou sentar. olhou-os de alto a baixo.

- digam lá.
tinha uma voz calma forte, impressionava quem não o conhecia.
que tinham sabido ter ele coisas antigas para vender e que eram compradores.

- não tenho nada antigo. tenho é velho. e ainda que tivesse algo de valor tinha filhas e netos a quem os dar.
agora podem ir. daqui não têm mais nada que lhes possa interessar.

ficaram sem resposta e lá sairam. mas não se foram, não.
ficaram rondando como raposas esfomeadas à volta do galinheiro.

acabou-se-me o tabaco.

- e mais, não há mais nada?!

- espera, estou a procurar...

perguntas

- e não disse mais nada?

- não.

- e foi-se embora?

- foi. parecia revoltado e infeliz.

- e não se despediu?

- já te disse, virou-me as costas e evaporou-se, lentamente. tão lentamente como a água. mas sem deixar uma nuvem sequer.

- e o nome, o nome?

- esqueci de perguntar. não lembro se ele o disse...

- e era alto?

- sim. como uma rocha que nascesse do chão.
porque perguntas tanto? que te importa?




in

- talvez tanto como haver vida, mais vida que aquela que se vê.

- que disparates dizes!

- contou-me tudo o que ele lhe disse sobre o tio agostinho?

- não. contou-me outras histórias. se calhar inventadas. por isso as não referi.

- eram só dele as histórias? não haveria pelo meio delas um genro, por exemplo?

- agora que perguntas... havia sim. mas como sabes? como podes saber?!

- não sei. quero saber, é que o tom desse velho...
deixe lá o que eu penso. limite-se a escrever o que quiser. mas a mim vai ter de contar mais. de contar tudo!

eu preciso saber!

- mais tarde, acalma-te. agora não ou a comida esfria como diria o velho alentejano. anda, o almoço está na mesa. depois falamos, com mais calma.

mas que agitada estás!



25 junho 2005

trova do velho que vai.


agruras da minha terra
que tão maltratada está
já ninguém a reconhece
pelos bons frutos que dá .

quem não ama onde nasceu
nem o ventre de onde veio,
é alguém que se perdeu
e vive agora no meio

de uma enorme confusão
do onde se deita o futuro
se é em macio colchão
ou desnivelado e duro.

minha terra minha gente
peguem no vosso bordão,
que o caminho é sempre em frente
e sem os olhos no chão.




Castelo de Arraiolos Foto Ivo Gomes

se m'animo cantando isto? olhe amigo, nem sei bem. mas é verdade o que canto e isso é o mais que levo de quando o estou a cantar. vivi muito. sofri muito. estes olhos já cansados, digo-lhe, viram demais.

mas quando vos vejo derreados á primeira aflição, dá-me uma raiva tã forte de os ver baços, enfezados, em pura lamentação!

a vida faz-se com luta. com trigo se faz o pão.

vou-me indo. esta disputa já é vossa, minha não
.


24 junho 2005

vai-me desculpar se eu hoje nã for grande companhia

tem vocemecê muita razão, tá uma tarde linda. para quem vem de fora e traz a maquinazinha à tiracolo.

é que eu já vi melhores dias na minha terra. nã senhor, nã tou falando do tempo do salazarismo. desculpe, isto de cuspir para o lado. é cá uma mania nossa se falamos desse tempo ou do diabo.

tava era falando da maldita seca. dê uma olhadela à sua volta... que é que falta a isto para ser um deserto?



by Alexandre Leroux

só se for as palmeiras. que escassez de camelos nã há em banda nenhuma deste mundo de Deus.

...não é pessimismo, nã senhor. foram-se os sobreiros, as oliveiras, o trigo e a erva este ano mal chegou a crescer. até para as pessoas a água é já à míngua.
o pior é parecer que não vai ser um ano só. diz quem sabe. ainda ontem no barbeiro se falava de um buraco negro... disso não sei eu nada. mas o que vejo vejo. e está à vista de ano para ano...

nã se acanhe, beba um tintinho fresco. a garrafa tá acabadinha de sair do poço. tá fresquinho.

vocês bebem-no quente? atão prove e depois conte. quem vive no calor sabe-lhe os truques.

que é que eu tava dezendo? olhe, deixe lá!

conte vocemecê coisas bonitas de lá de donde veio, se é que as tem. que aqui o velho hoje, está comó alentejo: uma secura só!

uma enxaqueca impede-me de escrever e quase de pensar, então

olho:


Mother Earth in pain, Her trees cut down, Her seas polluted
by MONICA SJOO


22 junho 2005

o banco.

ora viva! sempre apareceu. tava aqui dizendo que se calhar já se tinha ido embora. que quem não é de cá aguenta mal quando a calma é como a de hoje. tome assento homem. se não se importa de esticar o braço tire uma talhada de melancia, que pela cor se vê que está docinha e refrescar, refresca. isto desde que não beba vinho que é pior que veneno, quando se mistura no estomago fica que nem cortiça. é o diabo!

sirva-se, sirva-se!



Still Life Sunflower and Watermelon
by Alberto Morrocco


o quê? o ti agostinho? atão não se esqueceu?
ora homem, isso são coisas de pouca monta. se ele por cá andasse nem havia de gostar que eu as contasse. atão aquela de quando foi preso!...
preso? não se impressione que aquela prisão até a mim me dá ganas de rir.

foi ao cair da noite. tavam os homens na taberna bebendo o seu copinho depois de um dia de labuta. ele também, encostado ao balcão, parece que foi hoje. não era homem de brigas. nem nas dos outros se metia. mas não engolia desaforo nem injustiça fosse ela com quem fosse.

atão não é que mesmo ao lado dele, um calmeirão encorpado, já tocadinho, dá em enxovalhar um barranquenho, que aquilo parecia nem beber caldo quente de tão mirrado que era. se eles tivessem o mesmo tamanho o meu compadre nem se virava. ele era assim. o diabo é que ao olhar por cima do ombro viu a pequenez do aspanholado e o galarote a provocá-lo.

- tás com vontade de briga?

disse o ti agostinho.

- e você com isso? se quer troque de lugar que eu também chego para si.

- tá bem. já aqui estou. atão diz lá.

puxa o vagabubndo, que outra coisa não era, de uma navalha de ponta e mola, à traição.

o meu compadre cegou! baixou o braço e pegou na perna do primeiro banco que lhe veio à mão e, sem mais água vai, deu-lhe com ele nos cornos, desculpe, mas é a nossa maneira de falar.

aquilo foi uma sangria desatada. parecia que se tinha acabado de matar um porco.

não. nã morreu. daí por umas horas com uma data de pontos na moina, estava na rua. aos bordos, mas na rua. o pior é que no hospital estava a guarda e o meu compadre teve voz de prisão.

se ficou preso? é isso quinda hoje me faz rir. mudámos as mesas e os bancos para o largo da prisão e ficámos a jogar cartas até as mulheres andarem doidas à nossa procura. depois o guarda também queria ir para casa e deu-lhe a chave para ele se fechar. sob palavra de honra de lá estar de manhãzinha quando o guarda voltasse.

e se ele tinha honra!
teve três dias de férias que é mais do que alguma vez eu hei-de ter.

vai um cigarrinho, amigo?

era assim, o ti agostinho, homem de uma peça só.

21 junho 2005

o ti agostinho


Moura - foto de Pedro Mendes.

o ti agostinho era homem de antes quebrar que torcer, toda a gente sabia.

não que ele se gabasse. nem pensar! cara fechada e sem sorrisos. poucas palavras que quem muito fala muita asneira diz.

os feitos é que falavam por ele.

tinha força de toiro , salvo seja, dizia-se na vila. na tropa, na guerra onde estivera a ajudar espanhois, houve um sargento que desengraçou com ele e o trancou num barracão, de arma e chicote em punho. teve medo? qual quê! avançou para o sargento arrancou-lhe o chicote e ainda lhe partiu a arma no joelho. e olhem que era daquelas cerradas. duras que só tentando.

o outro, ao que parece, meteu o rabinho entre as pernas e desistiu de conselho de guerra ou o que fosse. mandou-o para casa na primeira leva. tinha medo de algum tiro que lhe viesse de acidente.

não dele, que não era cobarde, mas de algum amigo que se tivesse apercebido da trama do maldito militar.

bem, apresentado que está em poucas e mal alinhavadas palavras, que melhor não sei, o tio agostinho, alentejano dos quatro costados, a história, coisa pouca, terá de ficar para amanhã. que a minha senhora tem a janta pronta e nã na quero fazer esperar, que esfria.

até. santas.

18 junho 2005

quando a fonte não vem directa de forte nascente...


A fonte - Jean-Auguste-Dominique


seca.

aconteceu.


Obrigada.

16 junho 2005

letra inglesa


old parker

a caneta poisada sobre a secretária preta parecia esperar.
onde teria ele comprado a secretária de mogno? não era rico, nem muito pobre, valha a verdade. mesmo assim não era uma secretária comum para um homem como ele.

não se lia e escrevia como hoje. nem sequer se pensava em computadores. sonhava-se com robots que um dia viessem a fazer o trabalho pesado. sonhava-se e ria-se do sonho.

o homem loiro tinha uma letra bonita, inclinada, inglesa. lia muito e era admirado por isso.
estranho? hoje é.

vinha gente pedir-lhe toda a espécie de cartas, era o escriba da terra e em regime de voluntariado. à época também os havia recebendo, é natural, era a sua função na sociedade.

- é para o meu filho, está lá longe, escreva o que quiser, coisas bonitas.

e ele escrevia. coisas felizes de deixar os olhos rasos de lágrimas de comoção a quem lhe recebesse as letras desenhadas. antes, lia a carta a quem a enviava.

- ele há-de gostar. era assim mesmo que eu gostava de saber dizer as coisas. ele aprendeu a ler. por isso está lá longe a lutar por melhor vida. não sei se volta... já tenho netos, sabe?

muitas cartas escreveu o homem loiro. nem sempre tão alegres. às vezes cabia-lhe informar da partida definitiva de alguém.

- eu podia mandar um telegrama nos correios, mas o senhor sabe como é... quando chega um telegrama sabe-se logo que é desgraça. assim lê devagar. não precisa cá vir. nem ela tem dinheiro p'rá viagem...

o escriba ia, agilmente, passando a sua parker nas folhas de papel, à noite. depois de trabalhar no duro, todo o dia.

mas também lhe cabia ler o resultado das cartas que enviava. escrevia e lia a vida alheia para que a comunicação nunca parasse.

não era de estranhar que tivesse um pombal cheio de pombos-correio que soltava à tardinha e via voar em grandes círculos, até o som do milho os fazer regressar.

- o pai é o pombo correio desta gente.

deu a filha em pensar.

15 junho 2005


Nicola Di Nunzio


o alentejo ardente não era só poesia e cor e o ardila, rio de sons de harmonia.


o alentejo pode ser e é quase deserto, perto à raia de espanha onde o longe e o perto não se distinguem já.


dessa vez insistiram ainda mais, que não fosse.


- o ano foi tão mau. e o tio está a trabalho num monte com a tia, nos quintos dos infernos. não aguentas lá.


que sim, que aguentava.


- gosto do tio manel que sabe tanta coisa.


- são coisas inventadas.


a mãe, real crueza. se nunca fora doce...


- mas não faz mal, eu gosto de tudo o que ele conta.


- o raio da rapariga e a sua teimosia!


foi por tanto teimar que avisaram a tia.


o tempo era de seca. as ovelhas inventavam o pasto que comiam. comiam o restolho. toda a palha que havia era comprada já, ou o gado morria.
mas ela não pensava nisso. ela corria. com o primo rodrigo seu amigo de sempre.


- senta-te aqui à sombra, filha, que está uma torreira de queimar um qualquer!


ela já tinha a pele de cor aciganada, o sol não a tisnava porque mais não podia.


- vou só ali acima espreitar o que há para lá do outeiro, tia.


e enquanto falava corria tanto que a resposta já nem ouvir podia.
chegada ao outeiro olhou á volta. que planura daquele montinho cinza e vermelho de terra a vista alcançava!

assim ficou um pouco. presa de encantamento. tão largo o hozizonte!


subitamente viu, mesmo por baixo dela escondido no pequenino monte, um buraco redondo com olhos a espreitar. desceu acocorou-se e ficou a olhar.


in

não ficou muito tempo. quem sabe a mãe andasse ali por perto. bicho manso não era, isso tinha por certo.

na volta a casa não contou a ninguém senão ao primo quando ele regressou de ajudar o pai. e à hora da janta, trocavam olhares cúmplices que quem estivesse atento podia bem notar.

noite de meia lua. luz, a do candeeiro e a da lareira acesa para a água do café. os cabos eléctricos não chegavam tão longe. quem vivesse ali tinha por vocação ou não, pura vida de monje.

da noite veio um uivo de arrepiar. depois, espaçado, outro. de repente parecia que era a planície que estava a uivar.

- que é tio? - perguntou com medo.


photo by John H. Gerard;Canis Lupus, howling

- são lobos, filha. vêm ao cheiro dos borregos. há várias noites que andam a rondar.

na porta vozes de homens. o tio pegou um longo longo pau.

- não vai matar os lobos pois não? eles comem-no antes, tio?

- não filha, é assim: em um abrindo a boca direito ao tio enfio-lhe o vara-pau pela bocarra adentro. depois enfio o braço apanho-lhe o rabo e viro-o ao contrário.

seria talvez falso como a mãe tinha dito. mas de momento acalmara-lhe o coração aflito.

adormeceu antes do grupo que partiu com o tio voltasse a casa. meio da noite acordou com uma cantoria. eram os homens, que à fresca, descansavam tendo já um graozinho na asa. e lá ralhava a tia...

nem ela nem o primo alguma vez deram o dito por não dito. nenhum deles contou em casa haver ali pertinho, a toca do lobito.


Nature's Water Tapestry

subitamente, a morte veio à rua

levando-me assim mais um irmão

encontrou-me a sorrir e de alma nua

leve e disposta até a dar-lhe a mão.

14 junho 2005

será o mar?


thanks to

o vestido cor-de-rosa de organdim dera-lho quem? talvez a mãe.

foi o vestido de que mais gostou. se a deixassem levava-o a todo o lado a toda a hora.

era bonito e leve. a leveza da cor e do tecido. erguia-se com o vento. até com o bater da água na areia.
tinha vaidade nele. não vaidade para os outros, por comparação. vaidade pura. sentia-se bonita com o vestido.
olhava-se no espelho e girava agitando toda a roda da saia. pena o espelho não mostrar a roda toda! quando virava as costas não via mais nada. devia ser do espelho ser pequeno ou coisa assim.
- quando for bailarina hei-de ter muitos vestidos como estes! - sonhava.
tempos em que foi feliz.
depois, pouco depois, deixou de ser.
- " eu não nasci aqui e o meu destino é outro".
ainda hoje não entende porque se escreveu tão cedo um verso assim, não partiu.
alguma coisa forte a prendeu, prende ainda, a esta terra onde tão pouco valem os que são e tanta honraria se dá ao que parece.

olho lá para fora. pela janela do emprego e vejo a luz azul do tejo a caminhar para a foz. tanta luz! tanto azul! tanto sal!
será o mar que a prende?
este português, mar?

13 junho 2005

portuguesa.



vou por caminhos de pedras não me encontro com ninguém.

sem memórias e sem histórias. tropeço caio levanto-me. ninguém vê, ninguém lamenta. esfrego os joelhos e sigo.

direita a quê? sei eu lá!

a um sítio onde a terra trema, haja caudais transbordantes, ventos de arrancar cabelos.

um sítio onde se sinta com tanta força que os dentes se quebrem de se cerrar.

vou por caminho de pedras. não quero mal a ninguém. só não me apetece a esperança que me emprestam dia a dia as palavras estimulantes.

é que eu não quero ter esperança. hoje pelo menos não quero.

quero ter o desespero de quem vê chegar o fim.

vou por caminhos de pedras cheia de pena de mim!

quando a sombra da morte passa

já não choro. compro ou roubo flores

não vou a funerais não faço rituais

faço silêncio até dentro de mim

não escrevo versos porque não sei

não troco de lugar porque não posso




quando a sombra da morte passa

a buscar os que fizeram história

respiro devagar e fico à espera

que eles saibam o que estou a sentir.

A quem ensinou a força da Luta e da Coragem



Álvaro Cunhal, um Homem Grande

A morte anda enganada nestes tempos.

E Permaneces, Eugénio!


Urgentemente



É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.


Eugénio de Andrade

12 junho 2005

na casa branca vivia


naquela casinha branca tão caiada de pudor, de honestidade e revolta salpicados com amor, vivia um homem que fora de grande terra feitor.

sentado passava as horas num silêncio aterrador. fora na guerra soldado dos bravos dos com valor. respeitado em toda a terra onde vivia e vivera, onde dera onze filhos ao mundo para o alegrar e de sol a sol lutara na lavoura a trabalhar.

mas um dia uma falha da enxada o atingiu certeirinha e o cegou. manda o patrão que o tratem . precisava do feitor. mas a cura era difícil mandou dizer o doutor. e o homem ficou cego. perdendo assim o valor.

a reforma de tostões lhe garantiu o patrão. "fosse agora minha filha e ter-me-iam operado mas nessa altura só ia ao hospital de lisboa quem já estava condenado". o olho morto chorou. o outro guardou secura que homem como ele não chora ou alguma vez chorou.

naquela casinha branca na então vila de moura um homem triste, sentado, recordava os tempos idos na labuta da lavoura. pisando a terra vermelha cheirando a trigo azeitona que feliz o homem fora!

10 junho 2005

santos e quadras populares, claro. :)



não era da minha rua

nem era da minha casa

amava-me como sua

tinha o coração em brasa

meu rico Santo Antoninho

que és da minha devoção

ensinha-lhe o caminho

que vai ao meu coração.

tenho tanto para entregar

quem é que irá receber

este amor que eu quero dar

a quem provar merecer?

meus amigos fiquem bem

tenham esse humor em alta

eu só aqui estou também

por sentir a vossa falta.

08 junho 2005

bye bye. eu volto, não sei é quando... :) Bjinhos


in

fiquem bem!

mas eu vou espreitando. isso pelo menos hei-de conseguir.

07 junho 2005

nem sempre foi infância e o corpo cresceu

os dias também foram aumentando até chegar o verão.

a praia: troia. a outra, a sem torres. a que tinha marisco onde se tropeçava.

calor. o corpo febril. a alma em desassossego.

- júlia, vamos?

- hoje não posso. a minha mãe vai ao médico. fico com o meu pai.

a amiga tinha o pai acamado há anos.

- vai tu. está tanta gente... que mal faz?

- vim só para vê-lo...

- eu sei. vai tu! ele está lá à espera. iria ficar triste se tu não aparecesses.

foi.

atravessou o sado nos barcos antigos. chegou ao cais antigo. olhou em volta.

- um mar de gente. isto hoje está demais.

- fala sozinha?

- não. contra o destino que não fez desta praia uma praia deserta.

- nós fazemos. nós conseguimos tudo. você sabe.

- já nem sei o que sei.

- o sócrates acabou onde você começa. nada mau.


in


calor. tanto calor! porque aumentara tanto a temperatura? passara a pior hora...

- que bom ter vindo! venha sentar-se ali. tenho a toalha à sombra.

- não foi fácil. ninguém queria ou deixou e a júlia não podia... é uma mentira o que estou a fazer.

- é?

- não! é a única verdade.

- sim.

olharam-se. bastava. sempre bastou quando mais não podiam.

- olhe, golfinhos!

- estão cá todos os anos. vê aquele homem que se atirou à água?

- vai ter com eles?

-sim.

- um golfinho ficou para trás. brinca com ele.

- dizem que o reconhece...

o calor descera com a frescura dos golfinhos mas por pouco tempo. como as ventoínhas, o fresco só dura enquanto passam, a girar.

olhavam-se de novo.

- quer ler a sina, menina?

uma cigana velha, muito velha. de preto. parecia um corvo gigante a ensombrar o dia.

- não!

quase gritou. mas não é fácil fazer ouvir um não a uma cigana. ainda por cima velha.

pegou-lhe a mão direita.

- não, já disse!

- esta é de graça. se quiser saber tudo é que tem de pagar.

o homem sorria. não levou a sério. estava calmo, feliz.

- vai casar com um homem mais velho... vejo muitas complicações na sua vida... 3 filhos vai ter!

quer saber mais?

-não, já disse!

- deixe a menina em paz.

o homem estendeu-lhe uma moeda.

- o que eu disse vai acontecer.

tremia. porquê? gostava de ciganos.

- pronto, ela já foi.

- é, viu-nos juntos e fez cálculos errados: casou-nos.

calaram-se. tristes.

- tenho de ir. já não moro aqui...

- eu sei. eu levo-a ao barco para lisboa.

que feliz se sentiu!



já no barco viu-o a acenar e a gritar como um louco:

- AFRODITE!

aconteceu, num dia de muito calor...

gostava de gente mas não tanto assim

parecia que tinha nascido do chão.

mexia na terra. fazia-lhe bem. passava para ela dúvidas e medos. à terra contava todos os segredos.

coisas de menina? também mas não só. ela tinha medos que vinham na noite e não entendia que a acometiam no meio do recato dos cantos escondidos onde se acolhia. e que ninguém mais, nem mãe ou irmã sequer os sabia.

no entanto a terra parecia saber de onde eles vinham para onde eles iam. a terra falava? diria que sim. falava baixinho. era só estender-se encostada ao chão poisar o ouvido e esperar esperar. sabia dos ventos. sabia onde o mar.

ouvia os rebentos subindo para a luz. esperava por eles. via-os espreitar.

a toda a criança é dado esse dom de saber a terra como sabe a mãe.

pior é que a afastam tão cedinho dela que, ao tocar a terra, em vez de correr rebolar sobre ela a criança pensa que se vai sujar. e não poucas vezes começa a chorar.




- não tirem à terra o que dela vem.

a terra dá seiva e é colo também.

06 junho 2005

e assim não dormia ou dorme agora

"não, não é só ser lua nova e estar por isso mais escura a noite. não, não é por não haver varanda onde me enroscar no chão na fuga do calor de entre lençóis para o mosaico fresco.

não. também não é a falta do reflexo das luzes sobre o sado.

nem a falta dos morcegos cegos com asas de veludo a quase roçar-me o rosto e os cabelos. pequenos, mais pequenos que pardais. ratos volantes.

não é nada disso. é para lá disso, o que faz a noite tão diferente da minhas noites de sonho e poesia.

é que eu sabia a tua alma ali rentinha à minha. estavas do outro lado da cidade e, se calhar dormias. mas era ali que estavas, a meu lado.

e se a mãe me descobria em vigília e me obrigava a entrar, interrompia o nosso toque de almas como quem interrompe o mais sequioso encontro.

onde anda a tua alma? sei que por perto. por vezes sinto-a quase respirar. hoje não. desde manhã que não.

egoismo meu. virá quando for hora. como sempre: no assobio de um melro até em pleno inverno."

- vai dormir. vá, são horas. tu levas sempre tempo a adormecer...

quieta como um cacto?

só por obrigação ou contemplação. desde pequena que assim é.

bastou que chegasse a hora da liberdade e ei-la a beber néctar de rosas para se embriagar.

também há jasmim florido. estonteia. quase bate com a cabeça no muro para chegar ao aroma. não faz mal. não os quer misturar. o das rosas vermelhas pequeninas é muito diferente.

uma bebedeira de mistura de flores que ressaca dará?

- come filha que te faz bem!

- não bebas filha que te faz mal!

e as flores, que diria a mãe das flores?

a vizinha finge que estende roupa para ouvir o que ela diz às plantas. não consegue.

sempre falou com tudo, hoje ainda.

plantas pedras chuva vento terra os seus mortos os seus distantes vivos.

fala às vezes em silêncio. outras, todos podem ouvir.

o risco único é que lhe chamem louca. já chamaram. não se perturbou.

escreve como fala. por isso não é escrita. são palavras com alguma direcção.

(a cadela tem ciúmes do computador. rouba-lhe a mão com que tecla. a outra pende sobre o joelho esquerdo).

amanhã gostaria de se apaixonar. mais que não fosse, pela vida. mas vai ser tarefa difícil de levar a cabo.

bem, pomos de lado a paixão. amanhã vai amar toda a gente que conseguir.

à mão pendente falta-lhe o cigarro. a cadela aquietou-se. a música escorre como água límpida. como chuva sobre o jasmim e as rosas.


que bom, a música escorre!

nem no areal ou no planando ou no raios partam a memória

me apetece esrever.

estou aqui a atirar palavras contra o muro branco do écran que substituiu o papel quadriculado de antigamente.

mas não ganham forma nenhuma. a cabeça está esvaziada. de memórias? - não. as memórias são pretexto para me ir contando.

hoje parece que me esgotei. não há nada de mim para contar.

haveria: os vazios.

mas já são tantos que era preciso um livro inteiro de espaços em branco.

não. definitivamente hoje não escrevo.

teria de falar de mortes e abandonos. de amores que me apetecem e não tenho, sobretudo porque já os temo.

seria de velhice que falava se hoje escrevesse?

se calhar...

mas não calha porque hoje não escrevo.

hoje deixo-me morrer um bocadinho mais, mas devagar, que quem tiver pressa passe à frente.

tudo isso sem palavras pelo meio.

tudo isso só eu. aqui. parada. como uma árvore plantada imóvel no meio de uma planíce vasta árida.



como cacto com espinhos.

espantalho de desertos.

e as aves? faltam-me as aves!

05 junho 2005

foi lá muito para trás no tempo

era ela miúda. de uma miudez que fazia temer que a pele se rompesse e tombassem os ossos pelo chão.



Rainy Day Girl


lembrou isto agora ao passar pelo adesenhar, senão nem contaria.

para regressar da escola até casa havia uma ladeira íngreme, sem autocarro ainda. era inverno. lembra isso por detestar guarda-chuvas e ter um nesse dia. e galochas. faziam-lhe parecer mais magras as magríssimas pernas. dançavam no cano de borracha.

a subida cansava-a. às vezes fartava-se e deixava a mala para trás para a irmã carregar. claro que dava discussão.

mas nesse dia foi outra a razão, do lado oposto da estrada o choro convulso de um rapaz fê-las olhar.

um homem um burro e um menino da idade dela. o burro carregado o menino também, dizia que não podia mais e o homem, seria pai, o monstro? batia-lhe como se batesse em tudo o que detestava no mundo.

- eu vou lá!

- não vais nada. o homem bate-te a ti também...

não deu tempo à irmã, atravessou a estrada e com o cabo do guarda-chuva e a pontapé agrediu as pernas do homem. era onde lhe chegava...

- deixe-o em paz! devia haver uma protectora das crianças como há uma protectora dos animais!

o homem parou. olhou-a e seguiu pegando o saco do filho que ainda soluçava.

ela tremeu até chegar a casa e poder chorar.

porque hoje lhe doeu demais lembrar

Eu sei que vou te amar

- Tom Jobim -

FORBIDDEN LOVE


Eu sei que vou te amar
Por toda minha vida, eu vou te amar
Em cada despedida, eu vou te amar
Desesperadamente, eu sei que vou te amar
E em cada verso meu será
Pra te dizer que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida
Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua há de apagar
O que essa ausência tua me causou
Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda minha vida

04 junho 2005

sem resposta



- tem sempre a resposta na ponta da língua.

desculpava a mãe, sobretudo se era gente que a não conhecia.

não não era assim. mas não valia a pena desdizer a mãe. sempre tão segura tão ciosa de a conhecer melhor que ninguém.

pensa, que desgosto teria ainda hoje se soubesse ter passado por ela uma vida, sem a conhecer.


mas era de respostas que estava a falar, de respostas prontas, certeiras irónicas muitas, outras secas mesmo, como quem pergunta:

- não tem mesmo mais nada que fazer?

mas verdade, verdade, era ela não saber o que responder se lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande.

teria sido bailarina de lagos de cisnes mas crescera alta em época de gente de baixa estatura. que não, não daria...

por isso a ela sobrava a poesia.

mas como se diz a alguém que é ler poesia o que se quer ser?

ainda hoje não sabe.

ainda hoje a lê como antes fazia pelos campos desertos, lê-a em voz alta. é que só assim ela sabe bem se lhe agrada ou não.

não teve resposta quanto ao seu futuro.

o próprio futuro não sabe ela bem que chegou a ser.

hoje é passado.

e a poesia?

essa continua, dançando, planando, na sua memória. até que a memória deixe de existir.

03 junho 2005

a mentira.

havia muitos mendigos mais do que hoje haveria mas uns eram de verdade outros, nem tanto, diria.

- deixa-os lá pedir e segue o teu caminho

dissera-lhe a mãe um dia

- também não tens que lhes dar...

nessa verdade crescia.

mas de uma vez passeava pelo areal mão na mão com uma amiga de rua, dessas que quando podiam, andavam como ela andava, às escondiadas das mães, de pé descalço no chão.

deram com um ajuntamento e um homem que fazia de um cobertor o colchão. desmaiado parecia. não estaria.

todos queriam ajudá-lo. ele acenava que não.

assustou-se a rapariga. nada vira de parecido. esticava o homem o corpo ainda na areia estendido.
quando por fim se sentou explicou que tinha ataques e estava longe da terra sem dinheiro para o regresso ou para pão.

ela aí não resistiu. correu à casa da mãe a pedir-lhe a semanada.

- mas para que a queres tu agora?

- apeteceu-me comprar uma coisa que ali vi e me pareceu engraçada.

- depois não me peças mais. não sejas mal governada.

correu ao largo onde o homem, já refeito caminhava na direcção da saída da terra onde ela vivia.

- tome senhor... é só isto... dá para um pão com fiambre ou queijo se mais gostar....

o homem que não, não queria. acabou por aceitar e ela mais aliviada recomeçou a brincar.


in

mas a vida nem sempre é aquilo que nos parece, aprendeu para nunca mais esquecer, no dia que se seguiu.

estava ela junto à escola quando o mesmo homem viu com a mesma cantilena da família bem distante. pequena ou não, a menina avançou de encontro a ele com a força de um gigante.

- ainda se lembra de mim?

tanta raiva ela continha!

parece que sim, lembrava.

- bem te disse que não queria... - o homem balbuciava.

desiludida humilhada, foi-se a rapariga à escola.

dera o dinheiro do café, o de ver o Villaret.

e por muito muito tempo, desacreditou da esmola.


nada na vida é eterno. e nem a dor é infinda.

agora quando lhe pedem pensa para seu governo:

- num deserto de mentira, há tanta verdade ainda...

outra luz


Paul Cezanne, "Los jugadores de cartas"

depois de jantar os homens jogavam cartas. não a dinheiro que isso não havia. a rebuçados. depois levavam os rebuçados para casa e era festa para a miudagem.

o pai também jogava, no início.

mas o pai tinha outros sonhos. outra luz. o pai sabia ler.

havia educação de adultos feita pelo estado. mas os homens eram contra o governo e não só isso: tinham vergonha de ir à escola, com aquele tamanho todo de quem é chefe de família.

foi aí que o pai propôs que fossem lá para casa 3 vezes por semana. ele ensinava e era de borla. ainda por cima à noite. ninguém ia saber ao que é que iam.

(as noites que sobravam eram para escrever poemas até o sono o derrubar).

ela escrevia sem erros. por qualquer razão a irmã mais velha não. daí a honra súbita:

- lena, dás uma ajudinha ao pai?

- sim. o que é?

- andaram para aí a mudar a grafia das palavras. não vou ensinar os homens a escrever com erros... corrijes os ditados?

- claro, pai.

à noite, no silêncio respeitoso da sala, os homens sentados à volta de uma mesa sem cartas passavam-lhe os cadernos. ela lia-os e a lápis, muio leve, quase envergonhadamente, assinalava os erros. passava então os cadernos ao pai para ele ver melhor.

assim arranjou amigos entre os homens, que passaram a jogar a chocolates dos bons, dos da regina.

os que não tinham filhos traziam-nos, contentes, para ela.

- toma lena, ontem ganhei estes todos! mas dás também à tua irmã.

o senhor, Mário.

o senhor Mário aprendeu a ler e fez o exame. passou. tirou a carta.

o pai, escrevia poemas como sempre:

- lena, arranja aí uma rima para aventureiro...

02 junho 2005

leite

talvez tenha gostado do leite materno, talvez. duvida.
leite foi coisa que sempre a enjoou. por isso o pai a obrigava a tomar uns comprimidos de cálcio às refeições.

- toma isso vá lá... magrinha como és ainda arranjas raquitismo. o leite faz muita falta ao crescimento.

é verdade que o pai já tinha crescido tudo mas também não suportava nem o cheiro de leite. coisas de adultos...

ela gostava, no entanto do branco-leite. gostava de o ver no copo. até de ver os outros beberem-no com gosto. dava-lhe prazer isso.

mas se tivesse sede, nem que houvesse um rio de leite a mataria. exagero? talvez. mas perto da verdade.



in

nem por isso nas férias deixava de, ao fim do dia, ajudar uma colega da escola a entregar de porta em porta o leite que a família vendia.

aliviava-lhe o peso do pote e assim tinham tempo para parar e brincar pelo caminho. mas havia um carreiro que percorriam com passo mais acelerado. da primeira vez ainda perguntou:

- estás com pressa? porquê? ainda não é de noite...

- não estou... tu já vais ver.

e viu. viu que chegavam à bomba de gasolina mais afastada da vila. viu a amiga poisar a vasilha de leite e ficar especada, olhos fixos num rapaz moreno, aviar-lhe uma medida de litro de leite e não parecer ter vontade de sair dali.

ela escondera-se atrás da bomba. não gostava daquilo. era óbvio. o óbvio e o ridículo eram primos de que se afastava assim que os via.

- viste? viste? ele a olhar para mim daquela maneira?

- vi-te a olhar para ele. é mais assim.

- tens é inveja.

- daquilo?

seguiram caladas no regresso.

ao outro dia, não se escondeu atrás de nada e fitou o rapaz, serenamente.

- tens uns olhos bonitos.

- já me disseram.

- és arredia.

- não sou é parva.

pegou no pote sozinha e deixou a amiga com o suposto namorado.

- afinal ele gosta é de ti...

quase chorava.

- não sejas parva. ele é só um rapaz. não gosta de ninguém.

e foram correndo até casa atirando o pote vazio de uma a outra. livres do leite e do sexo oposto.

por enquanto.

01 junho 2005

o rochedo

in

nunca perdeu a vontade de trepar, escalar o que houvesse de obstáculo terroso pelo caminho. os joelhos esfolados mantiveram-se até tarde no tempo. quando podia deixava-se escorregar na descida.

nas descidas mais íngremes aprendeu a não olhar para baixo. serviu-lhe mais tarde para a vida. olhar para o fundo pode dar vertigem ou atracção do abismo. e isso ela não quer sentir.

mas a mais difícil escalada foi o colo do avô.

estranham? ela também estranhou, mas só de início. já em muito menina lhe diziam as primas:

- deixa o avô. ele não tem paciência...

- quem és tu? ah, és a filha da bia! és magrinha. parece que não bebes caldo quente.

tirava a mão de cima dos cabelos loiros da neta e voltava ao que fazia antes dessa atenção.

ela não se habituara muito a colos nem gostava que a agarrassem. por dentro agradecia. mas à noite, ouvia o pai e o avô falarem de histórias que a encantavam e mal compreendia.

o avô e o pai, juntos, riam.

era um rochedo que um dia ela tinha de escalar. mais até por ser um desafio.

o avô estivera na guerra de espanha. diziam que depois disso se tornara duro.

de uma vez, sem mais aquelas, ao seu jeito, estando o avô sentado numa cadeira alta, sozinho frente ao fogo, ela passou-lhe uma perna esguia por cima do joelho e sentou-se.

desta vez foi a neta a por-lhe uma mão nos cabelos.

- avô conte aquelas histórias da guerra que contava ao meu pai.

- quais histórias? eu sei lá histórias!

- conte as verdadeiras. as que eu gosto.

- já não me lembro...

- lembra pois!

- o raio da rapariga do que se havia de lembrar!

só se for daquela vez em que à noite assaltámos a trincheira dos outros a roubar pão e chouriços ao inimigo que a fominha era de rapar...

- sim avô, conte conte!

tinha escalado o último rochedo.

quando as mulheres voltaram da rua espantaram-se com o quadro inédito na casa, o avô com uma neta espigadota ao colo contando entusiasmado, histórias que um dia ela tentará contar.

- agora salta lá para o chão que já estás grande para colos!

- sim avô.