31 maio 2005

o contador de lendas


obrigada a Web Lages


ia por caminhos velhos que nem outros conhecia. apoiado num cajado e com um passo apressado mas ninguém o perseguia.

seria hábito antigo ou a pressa de chegar ao primeiro povoado para comer e se sentar? não sei. vi-o uma vez. na chegada à minha aldeia. foi um reboliço tal que nem fazem uma ideia.

- olhai o homem das lendas!

que estranho ouvir dizer isso a gentes sem tradição, entregues ao seu labor.

- mas quem é esse senhor?

- ninguém sabe de onde vem. sai do meio das fazendas e a troco de vinho e pão conta histórias milagrosas de se ficar a chorar.

depois segue. depois vai. não para em lugar nenhum. é como um santo que sai depois de longo jejum e volta para o seu mosteiro.

- e onde fica? quero vê-lo.

- é monje do mundo inteiro. para saberes onde mora terás de o seguir primeiro.

- e o povo, porque chora com as lendas que ele conta?

- lembram os nossos pecados mas em palavras bondosas. ficamos de almas tão leves como pétalas de rosas.

segui-o, não consegui evitar. mas o homem caminhava com o cajado na mão mais depressa do que eu. não deu para o acompanhar.

- onde será o mosteiro?

mas à frente, pouco à frente, se eu tivesse insistido, vê-lo-ia descansar no seu reino do momento. era um velho pardeeiro que o defendia do vento.

30 maio 2005

a cada espaço-tempo algo se perdia.

os berlindes. as 5 pedrinhas. o ringue. o disco chinês.

as partidas aos professores tornaram-se desafios quase mútuos.

estaria a ficar adulta?

não. adulta não. a meio caminho entre a saída da escola e o encontro com um eu cada vez mais estranho, seria louca? quem a amava dizia-lhe que não. ela dizia que sim em alta voz, sem medo disso.

as outras liam fotonovelas. ela camus e sartre. as outras namoriscavam ela amava, à camilo, até à morte.



Green Earth's End by Tracey Holland


mas que interesse tem isto?

texto sem enredo ou metafísica.

o mar. o som do mar num disco e dentro dela. mais dentro dela até.

- esta noite não me quero nem às minhas memórias.

ainda faltará muito para o fim? saberei quando?

e que fazer na hora?

é importante!

terminar tem de ter alguma arte.

the end

terça feira. pequeno almoço por obrigação, estremunhado. afinal a manhã não foi, ainda não é, a sua fase preferida do dia. e comer, só aprendeu a gostar disso lá para os trinta anos, o que não vem à história.

o pai arrancou com a moto. tudo era rotina. havia agora que apanhar o autocarro para o barreiro.

súbito. o som conhecido do motor da moto do pai, a regressar.

- é desta.

sentiu-se corar. não que o pai alguma vez a tivesse maltratado. nunca!

era ela. era assim. cheia de grandes medos por antecipação.

- podes despir a bata, lena.

trazia uma carta na mão

- tens um dia de detenção no forte. por teres tirado um menino debaixo de um carro eléctrico, claro.

e sorriu ao virar-se na pressa para o trabalho.


- que é um dia de detenção no forte?

perguntou mais tarde, na escola.

- é o que se faz aos soldados quando são castigados. não saem do quartel.

riu.

que teria sido da sua infância sem o pai?

pergunta hoje, com ternura grande.

IV - quem pode manda.

o professor de desenho contou ao director a história como quis e as colegas foram chamadas ao gabinete dele.

era sábado. cheio de sol lá fora.

as aulas já tinham terminado. havia de tarde actividades da mocidade portuguesa onde ela nunca se inscrevia.

- é obrigatório.

diziam-lhe.

- obrigatório o tanas! se está lá escrito voluntário quero ver obrigarem-me a ir.

parada ao fundo da escada, no piso raso, esperava as amigas.

- que é que estás aqui a fazer? tens aulas à tarde?

- não.

era o enorme director. tinha uma voz de locutor de rádio. que pena ser assim... um...animal.

- se não tens que fazer vai para casa.

- estou à espera de umas colegas.

- quais?

- as que estão no seu gabinete.

- ah! estavas lá quando o que dizem, se passou?

- estava. e mais senhor doutor, é verdade o que elas contam. eu vi.

- vai para casa, é melhor...

- eu espero. quero saber em que fica.

e se ela tivesse ficado calada? era tão tímida com os adultos que é que lhe deu? o de sempre, a luta contra a injustiça dos mais fortes.

- ai queres? então anda comigo. serves de testemunha.

foi. que remédio tinha.

ao entrar no gabinete o ar de espanto das outras é difícil de narrar.

resultado: dos nus só ela falou (grandes colegas!).

as outras tiveram três dias de suspensão. ela um por cumplicidade ou concordância com as outras. afinal era chefe de turma. para exemplo.

o director olhou-a com um sorriso entre o irónico e o quase terno.

ela olhou-o directamente nos olhos com a certeira raiva dum justo.

- como é que eu vou explicar isto ao meu pai?

passou um fim de semana a pensar nisso. nem o velho pinhal a livrava do peso de lhe ir dar um desgosto.


in

29 maio 2005

o nosso baile

repete-se a história?





tantos anos depois, que ela nem lembra. ainda havia escolas e batas brancas.

havia era amor já e o maior.

hoje recorda. sozinha. ele já partiu. tinha pressa de chegar sabe-se lá aonde.

partiu.

amanhã talvez volte a contar a história da escola comercial. hoje não.

ela hoje recorda um tempo um pouco à frente. que acabou numa vitória do setúbal contra o benfica e num baile no estádio.

o seu primeiro baile.



25 maio 2005

mas o pior pior pior... só na 2ª feira.

até lá não se esqueçam:



e tratem de ser felizes!

III - não fora o prof. de desenho ter levado nus para a escola

e ela teria a folha limpa. mas levou.

pastas livros desenhos pinturas da coisa mais proibida ao tempo: a nudez.




grandes-baigneuses.jpg


levou e durante aulas inteiras acicatou toda aquela puberdade à volta.
a secretária dele nem se via de pejada de batas brancas em redor. risinhos cúmplices. rostos afoguedados.

no intervalo, juntavam-se em montinhos de gente comentando corpos. era normal.


- não vais ver?


- não.

- são nus!

- e depois?

não gostava daquele professor. tinha um ar de lombriga amaricada e uns olhos gulosos. era viscoso. a pele dela arrepiava-se só de vê-lo.
e a voz? aguda. estridente. desafinada como um mau assobio.
reacção negativa.

alguma coisa não batia bem.

o tempo foi passando e trabalho, que é bom, nas aulas dele, nada!

mas o fim do período estava à porta e o director de ciclo pediu-lhe as pastas das alunas. teria havido queixas de pais, constou.

- as pastas na minha secretária amanhã. todas. com os trabalhos feitos ou reprovam.

era assim...

ela mal ou bem, que habilidosa nunca foi, entregou a dela. mais fizeram o mesmo. pior foi mesmo o grupinho dos nus.

- s'tor, não tivemos tempo.

- vou participar ao diretor.

eu não disse? era assim...

- senhor doutor.

- que é, madalena?

- a culpa também foi do senhor. se não tivesse perdido tempo de aulas com livros que não eram matéria, as pastas estavam prontas como nas outras disciplinas.


- era arte.

- sei. mas agora não dá para exigir.


olhou-a. fúria no olhar. calou de início, depois:

- tu tens a tua terminada. fica-te bem apoiares as colegas mas não me comoves.

- nunca quis comovê-lo. falo de justiça.

- o director de ciclo é que vai decidir.

- (maricas! cobardolas! porco! porco!)

nunca mais lhe falou. nem aquele bom dia que parece dever-se até ao diabo. nunca mais.

24 maio 2005

II - tinha um livro antigo e velho sobre mitologia grega

com imagens dos deuses e heróis.

sonhava dizer poemas com um vestido assim da cor do fogo. chegou mesmo a pedir à mãe que lho fizesse. mas a cor...



greek girls playing at ball

queria agarrar o vento.

por isso fugia ao desagrado das maldições do deus que lhe pintavam e ia, com as outras, jogar no largo onde morava o director de ciclo da escola.

não era de propósito.

era pois.


- e se a gente fizesse uma encomenda à mercearia deles?

- pois ... e não davam pela voz?

- se fosse a madalena não davam... já parece uma adulta a falar.

ia lá ela dizer que não!

encomendaram de tudo, ligando da cabine. coisas de ricos que só viam nas lojas para eles.

depois esconderam-se à espera de ver o rapaz da mercearia sair para entrar na casa do dr.

ele não estava lá, sabiam bem, mas estava a mulher.

lembra-se de ter tido muita pena do rapaz que mal podia com o caixote. não tinham pensado na idade de quem ia carregar.
era um terceiro andar. isso estragou-lhe quase todo o prazer da brincadeira. não disse nada. as outras iam rir dela se dissesse.
esperaram para ver.
lá descia o rapaz com a senhora furiosa, ao lado.
- tira a bata e vai lá escutar!
e foi assim que souberam ter ela dito que só podia ser brincadeira de miúdos e que só podia ser da escola.
- ...quando o meu marido vier...
- fujam!
- para quê?
- ela vai contar ao director!
- pois, e ele adivinha. vamos mas é mudar de sítio para jogar.
tinha fama de má. posta pela mãe, sobretudo.
e mal ela sabia...

23 maio 2005

I - dessa vez a mudança de casa foi a última coisa a acontecer.

a irmã foi primeiro para setúbal. o liceu.

ela, por ser fransina e medrosa (disseram) foi inscrita na escola comerial do barreiro. que ideia mais triste! mas se calhar foi falta de dinheiro para o transporte de duas...

fosse lá o que fosse ai estava ela a estudar o que nunca tinha querido.

matemática? nunca iria para um curso que dependesse dela.

o professor da matéria mal amada era vejam lá, o director do ciclo. imponente e cheio do seu poder. bonito, por sinal.

como a sorte nunca lhe foi madrinha escolheram-no para explicador da irmã.

- levas o envelope ao dr. com o pagamento?

- porque é que a mana não levou?

- o pai ainda não tinha recebido...

- ela que leve na próxima aula. não gosto dele.

- levas pois. há-de pensar que não queremos pagar.

os pobres preocupam-se com as dívidas, os ricos é que não.

esperava que todas saíssem. ficava até já não ver ninguém. não queria que pensassem que tinha cunha ou o que fosse de semelhante. não lhe agradava mesmo nada aquilo!


img from

- s´tor, o meu pai pediu que lhe entregasse isto.

- que é?

- não sei.

ele abriu e não chegou a tirar o conteúdo.

- diz ao teu pai que não precisava ter tanta pressa. a tua irmã ...

- já passava do tempo.

olhou-a pela primeira vez.

- parabéns. tens uns olhos azuis muito bonitos, sabias?

- é. sabia. não é mérito meu. nisso e na voz saio ao meu pai.

posso ir?

- obrigado. não precisas ter medo de mim. tenho fama de mau mas, só tens de estudar...

saía disparada. corada. de mãos húmidas.

àquela aula não podia ela faltar. ele iria contar à irmã e a irmã ao pai. a ele, ela não queria dar desgostos demais.

escolheram outra. ela e o grupo do mata que jogava na perfeição com um ringue.

- não podemos faltar todas ao mesmo tempo...

- a moral, podemos.

- ela dá por isso.

- não dá. de cada vez falta metade da aula. quando a beata fizer a chamada, responde uma pela outra. depois troca-se.

havia religião e moral 2 vezes por semana. era de bradar aos céus por misericórdia. mas a professora gostava de a ouvir dizer poemas e das perguntas que ela fazia. entretinham o tempo.

- faltamos amanhã. só duas filas. as outras que tratem de encher os espaços para não dar nas vistas.

deve ser por tanto ter faltado que tem uma noção de moral um bocado diferente da da irmã e de outras gentes desses tempos.

deve ser...


no dia da taça não vou deixar

que a vozeria do bairro

me entre pela janela.

desatine a cadela

me esfrangalhe os ouvidos

me desperte os sentidos



in

para a semana não deixo não

que os dois clubes são meus.

um é o velhinho, do coração

o outro tem na águia a glória

de asa livre e de história.

amado por este povo de deus.


tão pouco temos já, além da carestia

dos impostos, dos ladrões de gravata

da doce lusitana melancolia

da discussão política barata

por isso, sei que a taça até valia



mas... para a semana não.

fecho-me em casa

ponho auscultadores nos ouvidos

e a cadela no quintal

porque afinal

entre a memória dela

e a vida minha

vai um levezinho voo

de andorinha.

20 maio 2005


Papillon feuille - Marie-Lydie JOFFRE



e como borboleta olhava a vida

poisando em tudo sem poder repousar

tinha na alma aberta qualquer ferida

mas a quem, deus, a quem dela falar?

no papel dispunha letras breves

incompletos desabafos da hora

era triste era triste, essa menina

- se ao menos eu soubesse porque chora?...

não sabia não podia saber o nome à dor

da filha magoada desde o berço

para isso é necessário dar amor

não ao nascer, mas antes do começo.

borboleta das hortas na infância

borboleta da dúvida era agora

passara pouco tempo e que distância!

tudo mudava dentro dela e fora.

só a poesia e a espera se mantinham

num recanto sagrado do seu ser

desse esperado mistério tinha fome

quem lhe dera saber saber saber

aonde ou em que alguém estava o seu nome

para matar a sede de viver.






19 maio 2005

no tempo em que a solidão não tinha nome

surgiu a caixa mágica que, no portugal do tempo, só lenta lentamente trouxe para mais perto o mundo: a televisão.

o pai não foi o primeiro a comprar. só no ano seguinte. sobravam então para a ver, os chamados cafés. pequenas tabernas onde deixara de se vender carvão e tinham agora duas mesas para as senhoras. os homens preferiam os copos e conversas ao balcão.

em frente à casa dela havia um. a dona era a mãe da melhor amiga desse tempo.

- mãe, pode dar-me o meu dinheiro hoje?

- porque é que não o guardas? em que é que o vais gastar? em pastilhas, já sei...

era o costume. ela sabia sempre tudo por antecipação, normalmente, errava. mas, nesse tempo, não se discutia com os pais. esperava-se.

- mãe...

- o que é?! - já irritado o tom.

- dá?...é para ir ao café.

- só lá há homens.

- vou ver o programa de poesia.

- se a poesia fosse uma árvore de dinheiro esta casa era rica.

- não vou sem consumir...

- toma lá e cala-te! que inferno!

dez tostões. o preço exacto de um bolo recheado com nata. não era gulosa. hoje ainda não é. era para o consumo. para poder sentar-se.


João Villaret


no café, o João Villaret ensinou-lhe o que da arte de dizer o pai não saberia. encantava-se. fixos os olhos naquele homem gordo de voz mansa e modulada de onde a arte jorrava.

o barulho. muito alto falam as pessoas em portugal!

- fazem favor de se calar!

os homens ouviram a voz que parecia vir de um escaler com apito de vapor e olharam.

era a lena.

- eu também sou cliente e quero ouvir o Villaret.

estranhamente foi-se fazendo quase total silêncio.



desde aí, naquele dia , áquela certa hora, os homens poisavam os copos e ouviam poesia.

silenciosamente.

18 maio 2005

cantiga da estrela-doida





onde é que ela ia ?

se quem procurava

era fantasia

porque o ansiava

de onde o ouvia?


na praia sozinha

de negro vestida

"magrinha magrinha"

era a frase ouvida

mas nada a detinha.


que ao longe soava

do longe lhe vinha

um chamado bom

de santo de monje?

de onde aquele som?

era tão de longe!


um dia encontrou.

era porque havia

e a tinha esperado

como ela o esperou.


um dia, bem tarde

o amor chegou

ela bem sabia

que um dia viria

nunca mais foi só.


de amor sofre ainda

pois nunca acabou...

a tempos, esbate-se a nitidez de infância.

que se passa? há um nevoeiro líquido, uma bruma de sonhos inquietos.

são diferentes as corridas e as quedas desse tempo. escorrega-se, resvala-se.

borbulham no entanto as ideias como água de cascata antes de formar lago ou rio mansos.




antes era mais simples tudo.

onde o bem e o mal tão definidos?

o que estava errado chegava sempre pela voz crítica da mãe. o carinho e o apoio pela ternura natural ao pai.

havia ainda infância nas brincadeiras feitas agora contra os professores mal amados.

mas aonde os berlindes e o arco? as corridas de rapazes e ela?

as amigas pareciam tontas, cheias de segredinhos. subiam as saias acima do joelho e passeavam em grupo. era de namorados que falavam.

- vens?

- não me apetece.

não ia nem ficava. vagueava sozinha. se estava só, falava alto. fazia peças de teatro que ninguém escrevera.

- andas a falar sozinha, lena? - as vizinhas, se acaso a encontravam.

- não. tenho uma antena ligada ao salazar. sou espia. ando a contar os grãos de areia da rua para ele saber se não tiram nenhum.

- sempre a responder torto... bem diz a tua mãe...

o óbvio! porque é que não se calavam se não tinham nada para dizer?

estava à beira de qualquer coisa. faltava descobrir de quê?

16 maio 2005

gaspacho

no verão o sabor a fresco é tal

o primeiro beijo com sabor a sal.

em tempo de futebol, se os não podes vencer...


leu algures, está á venda o barreirense, o estádio claro. não lamentou. lembrou.

foi a segunda vez que foi à bola. com o pai e de moto.

- vais levar a miúda para aquela barafunda? ainda a pisam todos, à saída...

a mãe odiava multidões e ela não gostava também. mas com o pai tudo era seguro ou lhe parecia.

- eu vou lá estar não vou?

o pai era dos poucos homens ( nunca por ali viu mais nenhum fazer o mesmo), que só tendo filhas raparigas as passeava, orgulhoso, aos domingos, pela mão quando o tempo não era de praia.

os demais juntavam-se nas tabernas ou à porta delas em grupos desocupados e ébrios.

- posso ir à bola, posso? quem joga pai?

- a c.u.f. contra o barreirense.

- pior, vai haver pancadaria. há sempre.

e havia.

era renhido aquilo. dois clubes de uma terra pequena. o barreiro dividia-se.

foram. estava cheio o estádio. o antigo. não o que está à venda.

não entendia nada de faltas. só vibrava com os golos. os homens e as mulheres uivavam palavrões de vernáculo bem fabril às mães dos árbitros e demais família.

- isto não se repete, lena.

- não, pai. eu não repito.

venceu o barreirense. assim que se apercebeu que estava decidido o jogo, o pai ergueu-a até aos ombros como uma pena e foi saindo.

cá fora a guarda republicana a cavalo começara a bater sabe-se lá porquê. batiam sempre. teve medo.

fingiu bem:

- olha pai, uma fracção imprópria.

- o quê filha?

- a guarda, a guarda a cavalo: a besta de cima é maior que a de baixo.

o pai riu. arrancaram de pantera negra, a scooter.

- aritmética sabes... foi a professora que te ensinou essa?

calaram. cúmplices.

sobre aquela guarda toda a gente pensava o que ela dissera.

-passamos pela praia, pai, passamos?

- está bem, mas não paramos. a tua mãe está preocupada.

era bonito. havia água clara e... moinhos.


obrigada a

hoje não tenho memórias ou ideias, só cansaço

e trabalho parado sem eu sequer querer que seja assim.

detesto tudo o que foge ao meu controle.

particularmente hoje em que parece tudo querer fugir.

acordei a pensar em moínhos de vento.

de uma vez quis comprar um já em ruínas e fazer dele casa. uma casa redonda. para círculo de amigos e pão quente na mesa. música suave, sempre música.

proibiram a venda de moínhos.

mas os estranjeiros compraram. não entendi.

hoje não entendo nada nem me esforço.

fim de semana com ruído de bola a mais. até a cadela se enervou.

viva o benfica pois!

mas telejornais, jornais, caramba, cansa!

o meu moinho sonhado e comprado a meias com o amigo que morreu, hoje é de um inglês...



thanks to

pois, como é que a pensar nisso eu consigo escrever?

se ao menos me deixassem trabalhar...

estou triste e tenho sono.

talvez mais tarde ou nunca mais.

é segunda feira. nada ajuda.

13 maio 2005

os versinhos desta imagem estão no "areal"


in

não é este o espaço mas é este o dia.

não lhe contavam nada nesse tempo.


Moura - Thanks to

moura era ainda uma vila. caiada. branca toda. às vezes com uma barra de azul a debroar as casas.

devia ser pela páscoa. devia. era por essa altura que visitavam mais a família e iam todos. havia festas e a segunda feira festiva e pagã, do almoço à beira do ardila.

tinha uma irmã. não parece por pouco falar dela, mas tinha. era pouco mais velha e não brincava. talvez por isso a esqueça quando narro.

dessa vez a irmã, ela e uma prima mais velha estavam sózinhas em casa. deviam ter ido às compras as mulheres, a preparar a festa com borrego, para comer entre mergulhos gargalhadas e sol.

- que é que vocês estão a ver?

as outras duas apertaram as cabeças. murmuraram mais baixo ainda.

- nada. não é para a tua idade.

palavra mágica essa, a da idade. esgueirou-se entre as duas. a magreza para alguma coisa havia de servir. antes o não tivesse feito. antes não...

- que é isso?

- está calada! não contes a ninguém ou ainda levas!

era um frasco. não vazio. tinha alcool, devia ser... e lá dentro uma forma pequenina.

- isso é gente! o que é isso? diz lá!

a ansiedade, tanta ansiedade.

- está morto!

- não, está vivo - ironizaram.



depois foram esconder o segredo da tia onde ele antes estivera.

devia ser páscoa, mas não se lembra de mais nada senão de sair para a rua e de correr ladeira abaixo a soluçar.

ninguém lhe viu as lágrimas que corriam tanto como ela.

hoje sabe das hipocrisias de outras tias.

mas não. não vai, não consegue, votar.

não condena ou absolve, simplesmente não mata. tentará até à sua própria morte, não matar.


thanks to

12 maio 2005

vou abster-me no referendo sobre o aborto

e tudo por causa ou quase, de um simples frasco.

o meu é como este, transparente, vazio.



em

mas amanhã eu vou tentar contar.



no verão andava na praia
sobre a areia dura a pé
de uma vez achou um búzio
tinha vindo com a maré.

guardou-o, nem sempre é verão...

no inverno ouvia o búzio
a contar todo o segredo
que há nas ondas e no vento
e dos pescadores o medo
e das rochas e das redes
das sereias das histórias

tantas coisas que não vedes.

o búzio trazia o mar
companheiro de almofada
se o sono inda andava longe
perdido a imaginar
quantas vagas iam vinham
naquele som de embalar.

acordava pela manhã
e ainda que chovesse
não havia qualquer mal
toda a chuva que viesse
não levava o odor a sal
e a viajem que fizesse.

viajava em oceanos
dentro a lençóis
macios panos.

"são rosas, senhor..."

cada mudança de emprego era mais uma mudança de casa.

disso não gostava. habituava-se aos espaços, aos amigos. não não era a rotina. disso ainda hoje não gosta mas lá a vai levando. é a vida...

- mas filha, é para uma casa maior, vocês estão a crescer e fica mais perto do trabalho do pai.

ela sabia como ele trabalhava para que as irmãs estudassem e, calava.

na casa nova o quintal tinha árvores: uma laranjeira cheia de picos e uma árvore de alperces já crescida.

- isto tem picos e as laranjas são mirradas, pai.

- nem tentes comê-las. quando chegar a altura o pai enxerta a árvore e verás.

- que é que acontece?

- nasce um ramo que já não é bravo e a laranjeira dá laranjas doces. hás-de ver.

e viu. o pai sabia como resolver tudo. era tão bom!

ele andava de moto, gostava muito. era uma scooter, a pantera negra como lhe chamava. fizera no quintal uma garagem de tijolos para a guardar da invernia. um espaço grande. dividira-o ao meio. do outro lado era galinheiro.

como é que ele podia passar um domingo sem discutir com as galinhas?

- estúpidos animais! lá me foram às alfaces outra vez!

- são estúpidas mas abriram a porta, pai. (ria ela baixinho).

- abriram nada! alguém a fechou mal...

quando ele estava assim não valia de nada continuar o assunto. era uma relação privada entre ele e as galinhas. mas, quando a mãe queria uma para a panela:

- não, Bia, esta ainda está a dar ovos, esta não!

e não fora a mãe, pelas costas, cortar-lhes o pescoço e fazer fricassé, morreriam de velhas. era muito bom o fricassé e ele aí esquecia.

tinha aprendido a escrever, a rapariga. na escola claro e muito pelos poemas que o pai à noite, depois de se lavar do pó de pedra, escrevia até a mãe o arrastar para a cama.

havia ainda o caixote de livros que, de mudança em mudança os ia acompanhando e ela lia.

entenderia? às vezes quase tudo. outras lá teve, mais tarde de os reler. mas de todos ficavam as palavras a compor frases, a dançar-lhe na cabeça, até a obrigarem a deixá-las sair.

por isso, naquele quintal novo, escolhera o tecto alto da garagem para se isolar. trepava ao longo do muro. depois ia sentar-se a comer alperces e a juntar letras de sentir.



in


depressa foi descoberta pelos outros putos, os dos assaltos à fruta dos vizinhos.

- manda um! manda um!

- já vai. calem-se! se a minha mãe vê não me deixa voltar...

- manda! manda!

como ela conhecia o gosto da fruta assim, quente e por lavar! e atirava a cada um seu alperce. dia a dia.

- que é que estás a atirar fora, rapariga?

- nada mãe.

- nada não, que eu bem vi!

- eram bolas de papel que tinha já rasgado.

- tu não estragues a fruta com essa vadiagem. o raio da rapariga!

- era só papel, mãe. era só.

mentira.

pois, às vezes é preciso. se até a santa isabel mentiu...





ela de santa nunca teve ou terá nada. sabia era que agora chegara a sua vez de repartir.

11 maio 2005

brinquei tanto com espigas
por entre os dedos da mão
queria fazer um poema
o vento veio tão forte
arrancou-as fiquei triste
pois se era vento de norte...

seria sinal de morte
ou hoje o poema é pão?

regresso ao pó

as mãos sempre na terra se podia. era toda a paz que precisava. porquê? dizer não saberia.

nesse experimentar quase ninguém a acompanhava.

- deixa a terra que te sujas toda! nem os rapazes são piores, meu deus! acaba a gente de a lavar e é isto...

ela tentava não ouvir. ia para mais longe onde só sobrava um eco vago dos avisos da mãe. às vezes nem o eco. o silêncio. que bom quando era assim!

um bairro pobre mas novo. casas em construção ainda. sobraram muitas pedras de uma obra. trepou-as, claro, mas viu que algumas esfarelavam ao peso pouco dos seus pés.

sentou-se. estava muito calor. não usava chapéu e tinha a cor no rosto dos ciganos de ar livre.

numa pedra grande viu o que lhe parecia um caracol diferente. ali preso para sempre. decidiu, num acto de posse, libertá-lo.

pegou da calçada uma pedra bicuda e iniciou um trabalho moroso.

tanto bateu, cuidadosa para não partir o precioso achado que nem se apercebeu que a miudagem da rua a rodeava já.

- que é que estás a fazer?

como ela detestava perguntas imbecis!

- estou a pulir isto?

- e pode-se?

- claro. o meu pai é pulidor, não é?

- e depois?

- depois é só passar-lhe cera que ela à noite dá luz.

- juras?

- quem mais jura mais mente. experimenta se quiseres...

conseguiu retirar o fóssil sem partir. as outras desistiram cedo.



in



já mudou de casa até perder o conto e o caracol permanece na estante ao pé dos livros.

- um dia hei-de levar-te comigo, de volta ao pó da terra mãe.

10 maio 2005

aí não está...


in

de qualquer troço de quintal o pai fazia horta. não só para se comer, porque gostava da terra. aliviava-o do trabalho fechado.

numa das casas os quintais davam uns para os outros. o poço era comum. assim regavam. ela não, que não sabia ainda virar o balde lá no fundo, diziam.

- olha, filha, se queres mesmo ajudar o pai, mata os ovos que encontrares debaixo das folhas das couves.

- para quê pai?

- nascem lagartas e comem tudo.

- as lagartas pôem ovos?

- não. são as borboletas.

- não mato borboletas. são bonitas.

- está bem, são só os ovos das lagartas.

- posso arrancar uma cenoura?

- podes. lava-a da terra. estão tenrinhas agora e fazem os olhos bonitos. mas isso tu já tens.

era assim o pai. sorridente. carinhoso. paciente com ela.



- andas na horta com o fio? ainda o perdes.

a mãe.

ela não gostava do fio por causa disso. alguém lho tinha dado e era de ouro. desde aí não tivera descanso:

- olha o fio! ainda o prendes nas árvores e lá se vai...

mete o fio para dentro da blusa, ainda te o roubam.

farta, um dia tirou-o e decidiu livrar-se do calvário do ouro.

ao almoço alguém deu pela falta.

- perdeste o fio lena?

- não.

não mentia. não gostava.

- então onde é que está?

- não me lembro.

- ela sabe bem o que lhe fez!

- calma, a gente encontra-o.

depois de almoço reviraram a casa.

- está aqui, lena?

- não. aí não está.

depois foi o quintal virado do avesso.

cada alface, tomateiro, feijão verde era visto da folha à raiz.

- aí também não está.

dizia acompanhando os passos dos adultos. os vizinhos, dois deles, faziam parte já da busca ao ouro. entreajudas antigas.

até que o pai se lembrou do poço.

- e aqui, filha, estará aqui, sabes?

- corou.

- deitaste-o ao poço?

silenciou.

- bem, lá vamos ter de o despejar...


não sabia ela que se podia despejar um poço.

mas também não a obrigaram a usar ouro por muitos anos e bons.

09 maio 2005

a malga

boa era a época dos figos.

ela comia pouco, quase nada mesmo. vivia de água pão com manteiga e ar.

a mãe adoecia a cada refeição de vê-la chorar por não ter apetite. tanto médico e nada!

mas de amoras e figos, apanhados em directo gostava ela, fosse a que hora fosse.


in


- desta vez fico eu sozinha no alentejo. é sempre a mana!

- nem penses. vais para lá ralar a tua tia. tu nem da comida que eu faço gostas. julgas que a tia pode, com tanta gente, andar a adivinhar o que tu queres comer?

- ó pai... deixe lá! deixa? deixa?!

- nem aguentas dois dias sem chorar.

- deixa-a ir, Bia, se chorar eu vou buscá-la. faz-lhe bem sair debaixo das saias da mãe, de vez em quando.

- tu lá sabes...

- eu não choro. eu lá não choro.

foi.

era verdade que chorava muito. sabia bem porquê.

na casa daquela tia tinha 2 primos e uma prima. o António, a Candinha e o Rodrigo.

ela e o Rodrigo eram potros à solta no verão ardente. nem sabiam do calor. havia fontes para beber e encharcarem a roupa se lhes apetecesse. muito antes de voltar a casa já secara.

- onde é que tu levaste a prima? ela é magrinha e é uma menina. não pode andar por aí feito uma doida aos pulos, como tu.

vão lavar as mãos que a comida está feita.

para ela a tia tinha preparado um prato de miudezas:

- gostas, lena? faz-te bem. é galinha caseira. a tia foi comprá-los fresquinhos. faz-te bem.

- eu como igual a todos.

- não vais gostar, é só feijão com chouriça...

- eu como igual tia.

- pronto. experimenta... se não gostares o teu prato já está feito...

quase desapontada. com o gesto interrompido, prato ainda na mão.





sentaram-se . o António chegava já tarde. depois de namorar. trabalhava muito. já podia.

a toalha muito limpa. pão na mesa ou não fora alentejo.

a tia trouxe uma malga de barro fumegante que poisou no meio.

-Rodrigo, passa a colher à tua prima.

não havia mais pratos. esperou para ver como era.


como num ritual. cuidadosos, em silêncio, cada um se servia devagar do seu lado da malga. ninguém tocava a comida de ninguém.

comeu com eles e sentiu-se tão bem como se sentem os que fazem a primeira comunhão.



in


- atão não é que comeste mesmo? estava bom, filha?
- estava tia!
a tia sorriu, aliviada.
- olha, come o António os pipis quando chegar.
e foi pôr o prato sobre uma panela de ferro. que sempre fervia água no brando lume de lenha.

comera à mesa redonda.

06 maio 2005

não. hoje não escrevo. pois se fecho os olhos

e vejo o alentejo com as cores de Gauguin?!



in

Água e Sol




from Jacket Art



tenho asas de condor garras de tigre

força de rinoceronte enfurecido

agilidade de gasela em fuga

vivo em grutas sou polvo de disfarce

uivo a solo fora de alcateias

canto do rouxinol os cantos todos

beijo flores,sou breve colibri

redondo rolo qual bicho-de-conta

da tartaruga cobre-me a couraça.




nada em mim é humano ou tenta ser.

resisto em espaço morto de memórias

a animalidade é que me salva

neste já não viver - sobreviver.

05 maio 2005

o pião


in


se ao menos ela gostasse de bonecas...


não é bem que não gostasse, eram de papelão. para quê uma imitação de bébé se não se pode lavá-lo e dar-lhe leite sem que se estrague de vez e a voz da mãe suba no ralho costumeiro?


tinha os bolsos cheios de pedras e berlindes. de esferas de ferro que o pai trazia da fábrica de pulir mármore quando uma máquina se avariava.


as esferas eram o seu orgulho, ninguém mais tinha. conseguia trocar duas por um abafador.


a correr e a saltar à corda ninguém a apanhava de entre raparigas e rapazes.


- nem parece uma menina. tem o diabo no corpo, a rapariga!


tinha pois. se calhar ainda tem. o diabo faz parte da mesma criação, seja ela qual for.


tinha pois.


viver era na rua.
em casa era o enfado de ajudar a limpar um pó que nem chegava a poisar nos móveis e tirar o fio ao feijão verde.


- olha que levas o feijão todo atrás...


- não sei fazer como a mãe.


- a tua irmã já sabe. não é muito mais velha e aprendeu.


e ela com isso?


- despacha-te. o pai chega e ainda o feijão não está ao lume.


deve ter sido por esse tempo que tomou a séria decisão de nunca se casar.
com o tempo esqueceu-a. acontece.


o que nunca esqueceu foi uma dúvida que desde então lhe ficou:


- porque é que eu deixo cair o cordel do pião e ele não gira?

CAOS


Letting go...Part I by Sarah Kirby


sou gente mais que aquilo que pensava
sou gente até a dor cortar a carne
até já nem a morte ser um medo
até já nem a vida ser segredo

pois se está tudo aqui à nossa frente

neste caos urdido por nós, gente.






no espelho do lago
a forma de um rosto
ai que tentação!

o rosto tem brilho
atiro uma pedra
então se desfaz
em redondas ilhas
de água tremente.
aquieta-se a água
e lá está de novo
a forma de gente.

no espelho do lago
um rosto sorri
é de mãe, de irmão?

tanto que preciso
daquele sorriso
ai que tentação!

04 maio 2005

dia de lavar no rio

era dia de festa. para a miudagem só. para as mulheres era ter de andar quilómetros a pé com uma trouxa de roupa na cabeça e um cesto na mão com a comida muitas vezes ainda por fazer.


foto em

depois era atar as saias e, dentro de água, esfregar a roupa sobre a pedra com sabão azul e branco até não haver nódoa que se visse (alentejanas são mulheres de asseio conhecido) e estendê-la na margem a secar. entretanto preparar a merenda para os catraios e voltar a carregar de regresso o mesmo peso. limpo agora.
para ela, para os primos era o rio. as apanhadas. as escondidas. a voz da tia sempre a controlar, se os perdia de vista.
- tia, olhe que enguia tão grande!
- é uma cobra de água. não é venenosa. mas não lhe toques, mesmo assim pode morder.
ficou a olhar a cobra. tão leve e silenciosa dentro de água. sem guelras nem barbatanas fazia manobras rápidas ondulantes. depois... desapareceu.
- que pena, já se foi!
- as cobras são muito rápidas e espertas. viu-te e fugiu.
claro, como miúda que era, depressa esqueceu a pequena lição.

espero a hora da cobra. a venenosa. agora atenta.

ela há-de aparecer e já não fugirá.

Difícil adeus da Louca Mãe


MOTHER AND SON-MIGUEL CIFUENTES




louca louca louca sim
que mais foste que isso?
quem te obrigou a olhar a vida
como sagrada que é?

bem te avisaram
- ficas sozinha e depois?

depois: foi amar e criá-los
SOZINHA
foram os pesadelos com a violação
da menina que dormia
ao lado do teu quarto
que nunca mais teve
a porta fechada, para os ouvir.

e os do fim do mês que

depois de 12 horas de trabalho por dia

chegava sempre cedo demais
as operações o medo, tanto medo!

louca louca louca sim!

mas havia tanto carinho à espera
na porta da entrada
- deixa poisar a mala
deixem-me só entrar...

depois depois as tuas asas de águia
não bastaram pra não deixar
rastejar
a imunda cobra atenta destilando
veneno de matar.
a tua garra ferida vacilou...

louca louca louca sim
para que fingir
se ainda não paraste de sofrer?

adeus. e se houver anjos
(tem de haver!)
eles que vos apontem o caminho
estou a chorar
não o consigo ver...

filhos de que deus?


in


A avó e o pai da menina de cinco anos que domingo apareceu a boiar no rio Douro admitiram na terça-feira à Polícia Judiciária que esconderam e lançaram ao rio o corpo da criança, noticia esta quarta-feira a imprensa.

O Jornal de Notícias adianta que a avó da criança confessou depois de várias horas a ser ouvida pela Polícia Judiciária (PJ) do Porto que lançou o corpo da neta ao rio.
O jornal acrescenta que a autópsia ao corpo, realizada pelo Instituto de Medicina Legal, apesar de não ser conclusiva em relação à causa da morte, indica que a «criança apresentava vários lesões, coincidentes com um cenário de maus-tratos, sendo que algumas das facturas seriam antigas».
De acordo com o diário, a avó da menina negou que tivesse «espancado» a neta, apesar de reconhecer que o estado da criança era «muito grave e que não a tinha levado ao hospital».
O pai assumiu também, na PJ do Porto, ter encoberto o corpo da filha adiantando que a menina se magoou acidentalmente e que apenas não lhe terá prestado a assistência médica necessária, revela o jornal.
As declarações dos familiares da menina levaram a PJ a formalizarem a detenção dos dois principais suspeitos, que serão ouvidos esta quarta-feira no Tribunal de Instrução Criminal do Porto.
O diário adianta também que os médicos legistas concluíram que a criança foi lançada ao rio já morta.
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in Diário Digital

03 maio 2005

III História da Avozinha - É dos genes, é pois.


na infância da vida tinha uma família. inteira, inteirinha como toda a gente, com mãe e irmã com pai tios e avós.

na infância tinha e na adolescência e na juventude e até há uns anos atrás ainda a tinha , mais pequena já, mas família ainda.

quando era menina, na casa da avó, alentejo ardente, nunca se falava de uma tia velha, tia-avó, diziam vizinhas à volta da rua branquinha, caiada em baixo de azul.

- avó. vou ali à rua brincar.

- onde? não vás longe. são horas de almoço ou quase. comeste tão pouco. o avô vai chegar...

já nem a ouvia calcanhares batendo nas saias compridas. os sapatos brancos mal tocavam a terra batida da rua.

- é ali ao fundo, viras à direita, a 3ª casa, tem a porta aberta. vai ficar feliz. dizem que é louca. vê espíritos e fala com eles até... não tens medo, lena?

correu mais ainda. chegou ofegante. bateu de mansinho com os nós dos dedos.

- entra.

entrou.

- olá tia.

tinha a mesa posta para três pessoas.


A mad woman - Eugène DELACROIX

- és a madalena, não és? que bonita! esperava por ti.

estranhou. estranhou muito mas não disse mais que, depois de beijá-la:

- espera alguém para o almoço? eu volto outro dia...

- a mesa? não. é só para nós três.

sentaram-se as duas. a louca simpática tia, contou como lhe morrera uma filha jovem ainda e que ela esperava para as refeições. previra-lhe a morte. tudo o que de mal advinha aos seus previa ela sempre.

- ponho sempre um prato a contar com ela. nunca falta, nunca. está quase na hora de ela chegar, esperas um pouquinho?

-
a lena não pode. desculpe-me mana, mas tenho a comida dela a esfriar.

a avó fora-lhe, ansiosa, no encalço ao saber onde tinha ido.

da tia-avó louca guardou o amor à filha que lhe vira nos olhos bondosos. da prima não soube se aparecia ou não.

mas se a mãe a via, que importava o pouco que a crença dos outros dava à verdade que ela tinha, exposta na alma e na mesa de toalha branca e prato florido de espera festiva?

essa tia-avó soube que morreu.



anda por aí muita gente louca sem o assumir. disso sabe agora.

pobre o que não sabe ver a própria história. contrói sua casa em terra arenosa. mais tarde ou mais cedo acaba a ruir.